Ao iniciar uma breve reflexão sobre o tema que inaugura esta mesa de discussão, A Medicalização do Não Patológico, gostaria de deixar claro o lugar de onde falo. Atuo na área da História da Ciência e da Psicologia Social Crítica e é a partir destes olhares que tecerei algumas considerações sobre a relação entre saúde e doença, normal e patológico, a concepção do real como uma norma e a norma como uma regra que define modos e modelos de vida na sociedade. Sendo assim, esta análise pretende, em última instância, identificar o processo em que as ciências médicas se tornam uma ideologia científica, naturalizando o social a partir de leis biológicas.
Por este caminho, estabeleceremos um breve diálogo com Georges Canguilhem, um dos mais importantes epistemólogos do séc. XX, e com Michel Foucault, aluno de Canguilhem, a fim de contextualizarmos os fundamentos teóricos desta análise. De Canguilhem (1995), analisaremos sua posição sobre o “normal” e o “patológico”, procurando refletir as bases de sua psiquiatria fenomenológica à luz de sua epistemologia crítica sobre a naturalização e medicalização do social. De Foucault (1979;), extrairemos a análise sobre o corpo como objeto biopolítico de poder, sobre a medicina como um controle de vida e a imposição do conceito de saúde como um conjunto de axiomas morais sobre o corpo e a própria Vida, os quais se projetam na atualidade como “completo bem estar físico mental e social”, tal como define a Organização Mundial da Saúde (OMS).
A partir desses autores, analisaremos a seguinte questão, e que se encontra no interior do tema desta discussão, a origem da medicalização de problemas morais, de problemas sociais e de problemas humanos que são interpretados patologicamente a partir de uma moral indiscriminada e politicamente aplicada. Ancorada na Fisiologia e na Biologia, esta moral se projeta como uma ideologia científica de controle social.
Esta análise pretende valer a tese de que a análise sobre a medicalização do não patológico deriva da observação de uma clínica moralmente aplicada ao tecido social, o que nos coloca diante do processo histórico de internalização e medicalização do social.
Neste sentido, podemos perguntar: qual é o lugar da tristeza profunda, do estado de angústia e do sentimento de fracasso no mundo de hoje? Trata-se de experiências emocionais de ordem humanamente legítima ou patológica? Necessitam de tratamento médico?
Vamos analisar aqui os modelos de interpretação dos problemas sociais que se estruturam com base nas explicações neurobiológicas. É inegável o fato de que problemas sociais foram transformados em objetos de intervenção psiquiátrica, ou seja, desde o final do séc. XIX, os conflitos da vida social passaram a ser pensados em termos médicos.
No âmbito da Psicologia Social, observa-se o impedimento do sujeito psíquico de pensar sobre si mesmo e de criar estratégias de ação próprias e inventivas, uma atividade reflexivamente política, lembrando Espinosa. Do ponto de vista da praxis, citando Marx, nos afastamos do fazer reflexivo. Nos dizeres de Piaget, entende-se o fazer reflexivo como o sujeito que é capaz de pensar sobre si pensando, isto é, a interiorização e abstração do próprio esquema de ação.
Ao contrário desta psiquiatria ampliada ao social, a psiquiatria clássica Philippe Pinel (1745-1826) se negava a reduzir alienação (perturbação) mental às explicações materiais. As reformas pinelianas fundaram uma nova tradição na prática psiquiátricas, marcada pela articulação entre o saber e a técnica.
Denominadas agora de “afecções morais” as paixões da alma se tornam causa da loucura, marcadas como excessos relativos ao amor, à ordem social ou aos sentimentos, resistentes à regulação que deveria ser realizada pela razão (p. 238). Diante do excesso, a medicina mental busca a restauração do domínio racional por meios morais e físicos, de modo a curar os alienados, tornando-os novamente senhores de sua razão.
Pathos era o lugar que os gregos antigos reservavam às paixões, entendidas como a doença do coração, doença da alma, por obscurecerem a razão. Na virada moderna do pensamento ocidental, Rnée Descartes escreve As Paixões da Alma (1649), tratado que destaca a fisiologia como fundamento das experiências emocionais, as quais seriam produzidas pelos espíritos animais, reservando a alma o papel racional de operar e controlar o corpo sem confundir-se com este. O termo espírito animal designa o processo de motivação espontânea do organismo. O termo vem do latim spiritus animales e interpretado como um fluido espiritual que move o pensamento, a emoção e a ação.
Jean Pierre Cabanis (1757-1808), fisiologista e filósofo francês, formulou as bases de uma medicina filosófica, procurando oferecer um fundamento para uma ciência do homem. Propôs uma moral fundada na natureza, no fisiológico. A publicação da obra Relações entre o físico e a moral do homem (1796-1802) representa um marco nos estudos sobre psicofisiologia no séc. XVIII. Assim, a Razão se impõe como um ente racional e naturalmente moral, cuja ausência solicita um saber médico. A imoralidade passa a ser sinônimo de loucura, um desajuste racional. Assim, no espaço fisiológico da Razão se instituiu historicamente a dimensão psicológica da loucura.
Ao se expandir a psiquiatria passou a ser um lugar não só de definição do que é normal e do que não é, mas também de intervenção social. Ou seja, o anormal ou o degenerado passaram a constituir um desvio do padrão e uma ameaça à ordem, o que também ficou conhecido como teoria da degeneração, a qual viria a definir os degenerados da existência, isto é, um fundamento nosológico para a classificação de seres humanos psicologicamente estéreis e socialmente fracos.
Com a expansão da psiquiatria como uma epistemologia de base para a discussão do conceito de saúde, condutas indesejáveis foram interpretadas como patológicas, partindo daí o papel da psiquiatria como um conjunto de técnicas higiênicas e eugênicas sobre o social e o racial.
Para Canguilhem (1995), o normal não é uma medida correlativa a um dado conceito social de saúde e doença, normal e patológico. Não é um julgamento de realidade, mas um julgamento de valor que impõe uma noção limite de realidade. De acordo com Canguilhem, a atividade médica e suas terapêuticas insistem em falar da doença a partir de seus julgamentos de valor, uma vez que a lógica da terapêutica está centrada na doença.
A lógica centrada no diagnóstico e o tratamento centrado na doença estruturam as práticas clínicas na ciência moderna. O organismo passa ser visto como uma função e esta como uma norma que vem da fisiologia e passa a ser aplicada no meio social. Assim, como diz o autor, “constantes fisiológicas passam a ser consideradas normais no sentido estatístico (descritivo) e terapêutico (normativo)”. O normativo para Canguilhem é qualquer julgamento que determina uma norma, sendo esta subordinada ao homem que a institui.
Se formos às raízes das palavras, o termo anomalia vem da negação (a) de nomos (grego), norma (latim). Anomalia se refere, então, a um julgamento. Sendo assim, trata de um conceito formativo. Já o termo anormal é uma noção descritiva do estado de não saúde ou patológico.
Atenção a isto. Para Canguilhem, o problema não é quando o conceito de anomalia é derivado da análise sobre as atividades do indivíduo, mas quando é aplicado, explicando e interpretando a imagem que o sujeito tem de seu valor e de seu destino. De acordo com Canguilhem, o anormal não caracteriza o patológico, uma vez que este implica pathos, que reporta a sentimentos de impotência, sentimento de vida contrariada, sentimento de angustia.
Segundo Canguilhem, a patologia altera realmente as relações do doente com a norma – o doente é a incapacidade de ser normativo. Assim, ao querer estabelecer o normal se anula o patológico, isto é, o que está fora da norma. Com isto o autor quer dizer que a anomalia pode se transformar numa doença, mas não é em si-mesma uma doença.
O pensamento médico corrente no séc. XIX era uma espécie de dogma respeito dos estados patológicos, os quais eram vistos como uma variação quantitativa, uma estatística, de fenômenos normais, morais e mentais correspondentes.
Neste contexto, Canguilhem vai desenvolver uma psiquiatria fenomenológica ao propor uma nova compreensão sobre a normalidade e a patologia dos distúrbios mentais, um sistema de interpretação radicalmente distinto da metodologia positivista de Augusto Comte. Canguilhem parte do psíquico para o somático, procurando diluir seus limites de separação. Ou seja, o estado patológico não é sub-produto do estado normal, mas um estado que difere qualitativamente deste. Segundo Canguilhem, na doença o organismo é outro e não o mesmo com função reduzida.
Nesta perspectiva, a doença também singulariza, também individualiza. Poderíamos, então, dizer que a saúde pode ser entendida como a capacidade de se recuperar da doença e não uma ausência de doença. Desse modo, as ciências médico-psiquiátricas partem das práticas de cura ao controle social da Vida.
O processo clássico da medicalização parte de uma medicina moral que propõe soluções médicas para questões humanas para os sentimentos psíquicos profundos. No mundo de hoje é cada vez mais difícil pensar sobre nossas angústias, ao contrário, vivemos num projeto social que estimula a medicalização dos pensamentos para não senti-las. Assim, observa-se com força na atualidade um projeto de promoção da saúde que impõe uma nova moral, promovendo estilos de vida desejáveis, segundo a ideologia ou o que se entende normalmente por saúde.
Ao pensarmos na imagem do corpo, vem a dietoterapia; a forma do corpo, as academias e os suplementos alimentares; sobre o imaginário do corpo, vem o papel das mídias sociais; a respeito do tratamento do corpo, a clínica médico-psiquiátrica.
Ao pensarmos sobre o conceito de saúde da OMS, “completo estado de bem estar físico mental e social”, ou seja, a saúde não pode ser pensada como mera ausência de doença ou de enfermidade. Esta noção reporta a um pensamento utópico sobre saúde e bem estar, sobre a vida perfeita, a vida ideal, a vida feliz. Observa-se, assim, que no projeto civilizatório moderno não há um não lugar para as formas de mal estar subjetivo. O conceito de bem estar modula subjetividades (enquanto imagens de si-mesmo) a partir de conteúdos formativos do mundo que impõe modelos de saúde e concepções morais sobre a doença, isto é, uma perspectiva de vida totalmente medicalizada.
Nesta perspectiva, Foucault diria que somos saudáveis na medida em que somos capturados pelos dispositivos do biopoder. A biopolítica registra a entrada da biologia na política, fomentando a produção de biotecnologias de intervenção corporal; o corpo torna-se alvo de intervenções corretivas. Sendo assim, a psiquiatria se estrutura institucionalmente como uma epistemologia da ordem social, como uma gestão da anormalidade, uma ciência da conduta do corpo biológico.
Ivan Illich (1926-2002), pensador austríaco e crítico das instituições modernas, analisa a expressão “medicalização”, alertando para o fato de que ela esta extensão do poder médico mina (retira) as possibilidades das pessoas de gerenciarem sofrimentos e perdas decorrentes da vida comum, “transformando as dores da vida em doenças”.
Isto recorda uma passagem da Odisséia em que estavam o rei Menelau, Helena e convidados para um jantar, quando a recordação da guerra (de Tróia) despertou um sentimento de angustia e nostalgia do passado, provocando o choro comovido em todos os convidados a ponto destes não aproveitarem o jantar. Nesse momento, Helena tem a idéia de medicá-los com um remédio para a memória, um pharmacom. Esse remédio prometia a cura perfeita, o esquecimento total daquilo que nos faz sofrer, uma vez que as dores são habitadas por ausências no interior da memória. No entanto, o esquecimento pode levar ao sono ou à morte. Inspirado pelas Musas, os poetas na antiguidade cantam para seus ouvintes histórias que desviam a atenção daquilo que aflige, angustia e faz o “coração sofrer”.
Por esses caminhos, traçamos uma análise histórico-conceitual sobre o tema medicalização do não patológico, tendo como objeto a expansão da clínica médico-psiquiátrica, a qual vem a tratar problemas da vida comum como doenças a serem medicalizadas. Sendo assim, estruturados como ideologia científica, os conceitos de saúde e doença se projetam na sociedade como um julgamento moral que deriva das estratégias de controle biotecnológico do corpo, cuja função é a manutenção política de uma determinada ordem econômica e social-normal.
Obrigado
Luciano Fiscina