terça-feira, 29 de outubro de 2013

A Medicalização do Não Patológico


Ao iniciar uma breve reflexão sobre o tema que inaugura esta mesa de discussão, A Medicalização do Não Patológico, gostaria de deixar claro o lugar de onde falo. Atuo na área da História da Ciência e da Psicologia Social Crítica e é a partir destes olhares que tecerei algumas considerações sobre a relação entre saúde e doença, normal e patológico, a concepção do real como uma norma e a norma como uma regra que define modos e modelos de vida na sociedade. Sendo assim, esta análise pretende, em última instância, identificar o processo em que as ciências médicas se tornam uma ideologia científica, naturalizando o social a partir de leis biológicas.

Por este caminho, estabeleceremos um breve diálogo com Georges Canguilhem, um dos mais importantes epistemólogos do séc. XX, e com Michel Foucault, aluno de Canguilhem, a fim de contextualizarmos os fundamentos teóricos desta análise. De Canguilhem (1995), analisaremos sua posição sobre o “normal” e o “patológico”, procurando refletir as bases de sua psiquiatria fenomenológica à luz de sua epistemologia crítica sobre a naturalização e medicalização do social. De Foucault (1979;), extrairemos a análise sobre o corpo como objeto biopolítico de poder, sobre a medicina como um controle de vida e a imposição do conceito de saúde como um conjunto de axiomas morais sobre o corpo e a própria Vida, os quais se projetam na atualidade como “completo bem estar físico mental e social”, tal como define a Organização Mundial da Saúde (OMS).

A partir desses autores, analisaremos a seguinte questão, e que se encontra no interior do tema desta discussão, a origem da medicalização de problemas morais, de problemas sociais e de problemas humanos que são interpretados patologicamente a partir de uma moral indiscriminada e politicamente aplicada. Ancorada na Fisiologia e na Biologia, esta moral se projeta como uma ideologia científica de controle social.

Esta análise pretende valer a tese de que a análise sobre a medicalização do não patológico deriva da observação de uma clínica moralmente aplicada ao tecido social, o que nos coloca diante do processo histórico de internalização e medicalização do social.

Neste sentido, podemos perguntar: qual é o lugar da tristeza profunda, do estado de angústia e do sentimento de fracasso no mundo de hoje? Trata-se de experiências emocionais de ordem humanamente legítima ou patológica? Necessitam de tratamento médico?

Vamos analisar aqui os modelos de interpretação dos problemas sociais que se estruturam com base nas explicações neurobiológicas. É inegável o fato de que problemas sociais foram transformados em objetos de intervenção psiquiátrica, ou seja, desde o final do séc. XIX, os conflitos da vida social passaram a ser pensados em termos médicos.

No âmbito da Psicologia Social, observa-se o impedimento do sujeito psíquico de pensar sobre si mesmo e de criar estratégias de ação próprias e inventivas, uma atividade reflexivamente política, lembrando Espinosa. Do ponto de vista da praxis, citando Marx, nos afastamos do fazer reflexivo. Nos dizeres de Piaget, entende-se o fazer reflexivo como o sujeito que é capaz de pensar sobre si pensando, isto é, a interiorização e abstração do próprio esquema de ação.

Ao contrário desta psiquiatria ampliada ao social, a psiquiatria clássica Philippe Pinel (1745-1826) se negava a reduzir alienação (perturbação) mental às explicações materiais. As reformas pinelianas fundaram uma nova tradição na prática psiquiátricas, marcada pela articulação entre o saber e a técnica.

Denominadas agora de “afecções morais” as paixões da alma se tornam causa da loucura, marcadas como excessos relativos ao amor, à ordem social ou aos sentimentos, resistentes à regulação que deveria ser realizada pela razão (p. 238). Diante do excesso, a medicina mental busca a restauração do domínio racional por meios morais e físicos, de modo a curar os alienados, tornando-os novamente senhores de sua razão.

Pathos era o lugar que os gregos antigos reservavam às paixões, entendidas como a doença do coração, doença da alma, por obscurecerem a razão. Na virada moderna do pensamento ocidental, Rnée Descartes escreve As Paixões da Alma (1649), tratado que destaca a fisiologia como fundamento das experiências emocionais, as quais seriam produzidas pelos espíritos animais, reservando a alma o papel racional de operar e controlar o corpo sem confundir-se com este. O termo espírito animal designa o processo de motivação espontânea do organismo. O termo vem do latim spiritus animales e interpretado como um fluido espiritual que move o pensamento, a emoção e a ação.

Jean Pierre Cabanis (1757-1808), fisiologista e filósofo francês, formulou as bases de uma medicina filosófica, procurando oferecer um fundamento para uma ciência do homem. Propôs uma moral fundada na natureza, no fisiológico. A publicação da obra Relações entre o físico e a moral do homem (1796-1802) representa um marco nos estudos sobre psicofisiologia no séc. XVIII. Assim, a Razão se impõe como um ente racional e naturalmente moral, cuja ausência solicita um saber médico. A imoralidade passa a ser sinônimo de loucura, um desajuste racional. Assim, no espaço fisiológico da Razão se instituiu historicamente a dimensão psicológica da loucura.

Ao se expandir a psiquiatria passou a ser um lugar não só de definição do que é normal e do que não é, mas também de intervenção social. Ou seja, o anormal ou o degenerado passaram a constituir um desvio do padrão e uma ameaça à ordem, o que também ficou conhecido como teoria da degeneração, a qual viria a definir os degenerados da existência, isto é, um fundamento nosológico para a classificação de seres humanos psicologicamente estéreis e socialmente fracos.

Com a expansão da psiquiatria como uma epistemologia de base para a discussão do conceito de saúde, condutas indesejáveis foram interpretadas como patológicas, partindo daí o papel da psiquiatria como um conjunto de técnicas higiênicas e eugênicas sobre o social e o racial.

Para Canguilhem (1995), o normal não é uma medida correlativa a um dado conceito social de saúde e doença, normal e patológico. Não é um julgamento de realidade, mas um julgamento de valor que impõe uma noção limite de realidade. De acordo com Canguilhem, a atividade médica e suas terapêuticas insistem em falar da doença a partir de seus julgamentos de valor, uma vez que a lógica da terapêutica está centrada na doença.

A lógica centrada no diagnóstico e o tratamento centrado na doença estruturam as práticas clínicas na ciência moderna. O organismo passa ser visto como uma função e esta como uma norma que vem da fisiologia e passa a ser aplicada no meio social. Assim, como diz o autor, “constantes fisiológicas passam a ser consideradas normais no sentido estatístico (descritivo) e terapêutico (normativo)”. O normativo para Canguilhem é qualquer julgamento que determina uma norma, sendo esta subordinada ao homem que a institui.

Se formos às raízes das palavras, o termo anomalia vem da negação (a) de nomos (grego), norma (latim). Anomalia se refere, então, a um julgamento. Sendo assim, trata de um conceito formativo. Já o termo anormal é uma noção descritiva do estado de não saúde ou patológico.

Atenção a isto. Para Canguilhem, o problema não é quando o conceito de anomalia é derivado da análise sobre as atividades do indivíduo, mas quando é aplicado, explicando e interpretando a imagem que o sujeito tem de seu valor e de seu destino. De acordo com Canguilhem, o anormal não caracteriza o patológico, uma vez que este implica pathos, que reporta a sentimentos de impotência, sentimento de vida contrariada, sentimento de angustia.

Segundo Canguilhem, a patologia altera realmente as relações do doente com a norma – o doente é a incapacidade de ser normativo. Assim, ao querer estabelecer o normal se anula o patológico, isto é, o que está fora da norma. Com isto o autor quer dizer que a anomalia pode se transformar numa doença, mas não é em si-mesma uma doença.

O pensamento médico corrente no séc. XIX era uma espécie de dogma respeito dos estados patológicos, os quais eram vistos como uma variação quantitativa, uma estatística, de fenômenos normais, morais e mentais correspondentes.

Neste contexto, Canguilhem vai desenvolver uma psiquiatria fenomenológica ao propor uma nova compreensão sobre a normalidade e a patologia dos distúrbios mentais, um sistema de interpretação radicalmente distinto da metodologia positivista de Augusto Comte. Canguilhem parte do psíquico para o somático, procurando diluir seus limites de separação. Ou seja, o estado patológico não é sub-produto do estado normal, mas um estado que difere qualitativamente deste. Segundo Canguilhem, na doença o organismo é outro e não o mesmo com função reduzida.

Nesta perspectiva, a doença também singulariza, também individualiza. Poderíamos, então, dizer que a saúde pode ser entendida como a capacidade de se recuperar da doença e não uma ausência de doença. Desse modo, as ciências médico-psiquiátricas partem das práticas de cura ao controle social da Vida.

O processo clássico da medicalização parte de uma medicina moral que propõe soluções médicas para questões humanas para os sentimentos psíquicos profundos. No mundo de hoje é cada vez mais difícil pensar sobre nossas angústias, ao contrário, vivemos num projeto social que estimula a medicalização dos pensamentos para não senti-las. Assim, observa-se com força na atualidade um projeto de promoção da saúde que impõe uma nova moral, promovendo estilos de vida desejáveis, segundo a ideologia ou o que se entende normalmente por saúde.

Ao pensarmos na imagem do corpo, vem a dietoterapia; a forma do corpo, as academias e os suplementos alimentares; sobre o imaginário do corpo, vem o papel das mídias sociais; a respeito do tratamento do corpo, a clínica médico-psiquiátrica.

Ao pensarmos sobre o conceito de saúde da OMS, “completo estado de bem estar físico mental e social”, ou seja, a saúde não pode ser pensada como mera ausência de doença ou de enfermidade. Esta noção reporta a um pensamento utópico sobre saúde e bem estar, sobre a vida perfeita, a vida ideal, a vida feliz. Observa-se, assim, que no projeto civilizatório moderno não há um não lugar para as formas de mal estar subjetivo. O conceito de bem estar modula subjetividades (enquanto imagens de si-mesmo) a partir de conteúdos formativos do mundo que impõe modelos de saúde e concepções morais sobre a doença, isto é, uma perspectiva de vida totalmente medicalizada.

Nesta perspectiva, Foucault diria que somos saudáveis na medida em que somos capturados pelos dispositivos do biopoder. A biopolítica registra a entrada da biologia na política, fomentando a produção de biotecnologias de intervenção corporal; o corpo torna-se alvo de intervenções corretivas. Sendo assim, a psiquiatria se estrutura institucionalmente como uma epistemologia da ordem social, como uma gestão da anormalidade, uma ciência da conduta do corpo biológico.

Ivan Illich (1926-2002), pensador austríaco e crítico das instituições modernas, analisa a expressão “medicalização”, alertando para o fato de que ela esta extensão do poder médico mina (retira) as possibilidades das pessoas de gerenciarem sofrimentos e perdas decorrentes da vida comum, “transformando as dores da vida em doenças”.

Isto recorda uma passagem da Odisséia em que estavam o rei Menelau, Helena e convidados para um jantar, quando a recordação da guerra (de Tróia) despertou um sentimento de angustia e nostalgia do passado, provocando o choro comovido em todos os convidados a ponto destes não aproveitarem o jantar. Nesse momento, Helena tem a idéia de medicá-los com um remédio para a memória, um pharmacom. Esse remédio prometia a cura perfeita, o esquecimento total daquilo que nos faz sofrer, uma vez que as dores são habitadas por ausências no interior da memória. No entanto, o esquecimento pode levar ao sono ou à morte. Inspirado pelas Musas, os poetas na antiguidade cantam para seus ouvintes histórias que desviam a atenção daquilo que aflige, angustia e faz o “coração sofrer”.

Por esses caminhos, traçamos uma análise histórico-conceitual sobre o tema medicalização do não patológico, tendo como objeto a expansão da clínica médico-psiquiátrica, a qual vem a tratar problemas da vida comum como doenças a serem medicalizadas. Sendo assim, estruturados como ideologia científica, os conceitos de saúde e doença se projetam na sociedade como um julgamento moral que deriva das estratégias de controle biotecnológico do corpo, cuja função é a manutenção política de uma determinada ordem econômica e social-normal.

Obrigado
Luciano Fiscina

A Fenomenologia da Percepção em Maurice Merleau Ponty: Uma reflexão sobre o corpo e a realidade do virtual no mundo de hoje.


Apresentação 

 O tema que inaugura esta palestra procura abrir uma interrogação sobre o corpo como uma ontologia do sensível, um ente reflexível que se constitui na dimensão do espaço e do tempo. Enquanto espaço, pensaremos sobre sua extensão e seu lugar no mundo. Enquanto tempo, pensaremos a respeito de uma subjetividade encarnada, um eu psíquico que habita um corpo e que aprende com este a pensar sobre si mesmo.

O subsídio teórico desta análise é a Fenomenologia da Percepção em Maurice Merlau-Ponty, acrescido das interpretações de Marilena Chaui sobre a relação entre corpo, espaço, tempo e consciência. Entretanto, uma vez estabelecido um modo de compreensão possível sobre o processo de constituição do corpo na dimensão física do espaço e do tempo, esta discussão tem o objetivo de refletir como se dá tal constituição na realidade do virtual, a qual simula e reproduz as experiências mais elementares e significativas da existência humana.

Sendo assim, esta discussão envolve três momentos, divididos da seguinte forma. Começaremos este diálogo, deixando claro qual é a compreensão de corpo, espaço, tempo e consciência que estaremos assumindo nesta análise. Em seguida, refletiremos a diferença entre realidade virtual e realidade do virtual, assim como procuraremos conceitualizar as noções de real e virtual antes da revolução cibernética e após esta, isto é, com o intuito de refletir qual é o lugar do virtual no mundo de hoje e como a existência humana na sua concretude, simbolizada aqui pelo corpo, se projeta nesta dimensão, virtualizando a si-mesma. Por fim, fecharemos a discussão com uma breve reflexão sobre dois exemplos icônicos contemporâneos, os filmes Matrix e Avatar, os quais representam a operação de uma engenharia social sobre o corpo, quase como a projeção formativa de um eu digitalizado. Tal análise nos permitirá pensar sobre as transformações ocorridas no campo da percepção do espaço e do tempo a partir das correntes mudanças tecnológicas.

Por este caminho, retomaremos algumas questões clássicas acerca da relação corpo, consciência e mundo, refletindo a separação entre homem e natureza, soma e psique, a qual dominou a filosofia racional e a ciência moderna. Vamos indagar o que acontece com esta relação, responsável por regular a estrutura inteligível do mundo e do pensamento sobre o corpo vivo (ou seja, não se trata apenas de um pensamento sobre o mundo, mas um pensamento que representa a si-mesmo), diante da dissolução do espaço e do tempo no mundo do virtual (isto é, como passamos a ver o mundo e nossa própria projeção nele). Em outras palavras, como pensamos sobre nós-mesmos e nos representamos fora do corpo num mundo virtualmente projetado?  
I – Referência dos conceitos de corpo, espaço, tempo e consciência a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty. 

No sistema filosófico de Ponty (1945), o conceito de corpo assume a forma de um ente sensível. Ponty tenta ultrapassar a dimensão de uma ontologia bruta sobre o corpo e sua relação com a totalidade da experiência humana, defendendo a tese de um corpo reflexivo, orgânico, vivo, holístico e, por isso, concreto, material, físico, porém não redutivamente substancial. Trataremos, então, de discutir uma ontologia que, como diz Chaui (2002), se recusa a estabelecer uma diferença entre fato e idéia, coisa e pensamento, soma e psique, corpo e consciência.

Ao centralizar a discussão na análise do sujeito do conhecimento, um sujeito epistêmico que conhece o mundo, que o nomeia, imagina e o concebe, Ponty (1945) nos oferece uma análise estrutural do papel da subjetividade e da consciência na função movente do corpo, isto é, aquilo que nos coloca diante do mundo e de seus fenômenos, permitindo-nos pensar sobre nós mesmos no interior da realidade sensível.

Tal como formulado por Chaui (2002), eis o paradoxo – não somos pensamento puro, pois somos um corpo. Não somos uma coisa, pois somos uma consciência. Somos uma consciência encarnada no corpo, ao mesmo tempo, nosso corpo é animado e habitado por uma consciência. Nessa ordem estrutural, é a realidade do corpo que nos permite sentir e, portanto perceber o mundo, os objetos, as pessoas. É a realidade do corpo que nos permite imaginar, sonhar, desejar, pensar, narrar, conhecer, escolher.

Neste sentido, Ponty (1945) procura ultrapassar o res cogito cartesiano, propondo uma filosofia distinta da compreensão racional sobre a relação alma-corpo, ou seja, um sistema que não se baseia na ordem do eu-penso, mas do eu-sinto. A partir da noção de uma subjetividade encarnada, Ponty trabalha a noção de que o mundo é o que vemos com olhos do espírito, olhos da carne, contudo, como diz, “precisamos aprender a vê-lo”.

O projeto de Merleau-Ponty enfatiza o sentido do corpo e do sensível como realidade essencial do humano. Essa trajetória de Merleau-Ponty delineia uma inegável relação do corpo com o sensível e este com o inteligível. Ao trazer uma discussão sobre o mundo a luz do sujeito que habita uma subjetividade, Ponty reflete sobre o mundo a partir da fenomenologia, uma epistemologia que faz frente à corrente positivista que se estabelece no interior da ciência moderna, produzindo ideologias científicas que derivam de um sistema de interpretação de mundo e que o define como um conjunto racional de fatos científicos.

Mediante a concepção fenomenológica de mundo, Chaui o interpreta como o lugar onde vivemos, vivemos com os outros e rodeados pelas coisas. Um mundo qualitativo de cores, sons, odores, tessituras, figuras, fisionomias, obstáculos, caminhos, lembranças, um mundo afetivo, um mundo de uns com os outros. Um mundo de conflito, esperança, luta e paz (CHAUI, 2002).

Partindo da fenomenologia do espírito (Hegel), diríamos que somos seres temporais. Nós nascemos e temos consciência do nascimento e da morte, do início e do fim, temos memória do passado, esperança do futuro. Somos seres que fazem a história e que sofremos os efeitos dela. Lembrando a filosofia agostiniana, nós somos o tempo, o tempo existe porque nós existimos.

No entanto, também somos seres espaciais. Como descreve Chaui (2002), para nós, o mundo é feito de lugares, perto, longe, o caminho, a mata, a cidade, o campo, o mar, a montanha, o céu, a terra. Esse mundo espacial é feito de dimensões, grande, pequeno, maior, menor. É feito de qualidade, cores, sabores, odores, sons, tessituras.

O que é nosso corpo? A física dirá que é um agregado de átomos. Certa massa e energia que funciona de acordo com as leis gerais da natureza. A química acrescentará que ele é feito de moléculas de água, oxigênio, carbono, enzimas, proteínas, funcionando como qualquer outro corpo químico. A biologia dirá que é um organismo vivo, um indivíduo membro de uma espécie, animal, mamíferos, vertebrado, bípede, capaz de adaptar-se no meio ambiente por operações e funções internas, dotado de um código genético hereditário e que se reproduz sexualmente. A psicologia pode pressupô-lo como um aparelho biológico receptor de estímulos ambientais e emissores de respostas por meio das quais se apresenta um comportamento observável. Assim, responder o que é o corpo a partir de uma coisa, o coloca como uma coisa entre as outras coisas, funcionando quase como uma máquina, um autômato, cujas operações são observáveis direta ou indiretamente. Contudo, Ponty concebe o corpo como um ente visível e vidente, ou seja, o corpo além de ser visto também vê e se vê (o que para nós é o mais importante).Assim, descreve Chaui (2002), me torno visível para mim mesmo, pois posso me ver vendo.

Do ponto de vista dessa subjetividade que vê a si-mesma, o corpo é um ser tátil. Pode ser tocado, mas, sobretudo, tem o poder de tocar. É tocante, mas é capaz de tocar e de tocar-se. Ou seja, nos dizeres de Chaui,(2002), o tato é uma operação que o corpo pode realizar sobre si mesmo.

O corpo é sonoro, pode ser ouvido, mas, principalmente, pode se ouvir. Pode fazer-se ouvir e pode ouvir-se quando emite sons. Isto é, antes de tudo, sou sonoro para mim mesmo. O corpo também é móvel. É dotado do poder de mover-se. É um movente, um móvel-movente que tem o poder de se mover pela vontade. Portanto, é móvel e movente para si próprio. Em outras palavras, o corpo é um sensível que é sensível para si mesmo. Assim, o corpo, em sua totalidade, é o modo fundamental de ser no mundo.

Para Merleau-Ponty, é possível pensar a formação da subjetividade no próprio corpo como um tipo de reflexividade que este realiza sobre si-mesmo, tal como o exemplo da mão que toca e é tocada. Quando a mão direita toca a mão esquerda, acontece um enigma, um mistério, porque a mão direita toca a mão esquerda, mas também é tocada pela mão esquerda. De tal modo que aquele que toca é tocado e aquele que é tocante é tocado e não sabemos mais qual mão toca e qual mão é tocada. Portanto, meu corpo é uma reflexão reversível para si mesmo. Sentindo-se sentir, meu corpo realiza a reflexão, característica primeira da consciência e da alma na filosofia clássica. O corpo é um ente reflexivo para a consciência que não se percebe na ausência deste. Na perspectiva de Ponty, a primeira reflexão é realizada pelo corpo. A consciência aprende com o corpo a refletir.

Sendo assim, o que acontece quando não temos mais a referência do espaço e do tempo como o centro das experiências constitutivas do corpo? A experiência do virtual, propiciada pela internet e pelas biotecnologias do corpo, oferecem outras vivências e trocas corpóreas que não partem mais da experiência pura do sensível, mas de uma experiência virtualizada.

II - Sobre a Realidade do Virtual

O termo realidade do virtual difere da noção realidade virtual, a qual  significa a reproduzir em um meio digital a experiência da realidade. Assim, o termo realidade virtual implica uma simulação virtual do real, do aparente, do sensível, envolvendo a virtualização de um “eu”, de um “nós”. Já o conceito realidade do virtual implica efeitos materiais que ainda não existem plenamente, ou seja, ainda não são totalmente reais, mas possíveis. Assim, o conceito realidade do virtual implica uma simulação sobre o possível.

O mundo virtual ou realidade virtual é um mundo sem espessura espacial e temporal (um mundo sem lugares, sem distância. É um mundo sem tempo, onde nada passa e nada fica. Tudo coexiste sem passado, sem porvir, num presente interminável. Mundo da acronia. Na filosofia clássica o virtual é o mundo do possível. Se o possível é real, o virtual é real.

Na tradição filosófica, o possível pode vir a existir se houver um agente ou uma circunstância. Por exemplo, a semente é a árvore virtual, a árvore possível. O possível é a potencialidade virtual que pode vir a existência. Nesta concepção, o virtual não se opõe ao real, mas ao atual. Isto é, o virtual é algo real e existente que aguarda uma atualização, tratando-se, portanto, do que pode ser infinitamente atualizado.

Ao contrário, no mundo de hoje o virtual pressupõe a experiência do irreal, de um possível criando o inexistente. A informática modifica o conceito de virtual como algo já real e existente. Ou seja, a experiência de virtualização do real tem se tornado a ponta fina da mutação em curso, projetando processos de criação de realidades inexistentes para o corpo sensível. Vivemos um processo de transformação de um modo de ser e sentir em outros, os quais (tais processos) decorrem de técnicas cibernéticas de projeção de imagens
que se assemelham, nos dizeres de Chaui (2002), a almas angélicas sem corpo que habitam o não espaço e o não tempo.

O ciberespaço dispara formas despersonalização do real, uma vez que passa a representar disposições espaciais quase que espirituais, oferecendo possibilidades de realizarmos feitos fantásticos, como voar, mudar a própria aparência e teletransportar-nos. Tal espaço virtual, como o second life, oferece a experiência de transcendência das determinações biológicas, como a imortalidade e o não-envelhecimento. Trata-se de um espaço virtualizado que nos torna seres de pura luz. Como ressalta Chaui (2002), nos tornamos livres da brutalidade, do caos próprio dos nossos corpos, livres do espaço, da corrosão e vicissitudes do tempo. Tornamos-nos anjos de um novo paraíso terrestre, sem mortes, fazendo downloads de nossas mentes para computadores, transcendendo a materialidade da existência e vivendo eternamente no espaço digital.

Do lado do ciberespaço, nos dizeres de Chaui, nos tornamos puras almas angélicas, sem corpo, enquanto que do lado da ciência nos tornamos puros corpos sem alma. Enquanto a cultura do ciberespaço propõe a desmaterialização do homem, sua transformação virtual em seres digitalizados, sem espaço e sem tempo, a genética, biologia molecular, bioquímica, neurobiologia, as ciências da vida, tomam a direção oposta e propõem a pura materialidade do espírito, a indistinção entre cérebro e alma, cérebro e consciência. Vale ressaltar que essas disposições refletem a clássica discussão entre as proposições sobre o controle do mundo anteriormente desenvolvidas nos trabalhos de George Orwell (1903-1950) acerca das revoluções tecnológicas da informação e de Aldous Huxley (1894-1963) sobre o condicionamento biotecnológico de embriões humanos.

Como reforça a filósofa, essas duas posições estão presentes quando utilizamos as expressões inteligência artificial, armas inteligentes, tecidos inteligentes, remédios inteligentes, edifícios inteligentes, semáforos inteligentes, sem nos darmos conta do que significa utilizar o termo inteligência para objetos técnicos. Ou seja, passamos a considerar esses objetos como que dotados de consciência ou alma, caindo numa posição anímica do mundo e, ao mesmo tempo, reducionista do homem.

As novas tecnologias, como a internet e os jogos eletrônicos e interativos que simulam ávida real, têm um papel na constituição dessa nova subjetividade que tem sua origem na projeção de um eu digital num corpo virtual. O ciberespaço inaugura um espaço digital para a prática de relações humanas que não apenas simulam a realidade, mas a transcende em suas determinações mais fundamentais. Sendo assim, a experiência virtual tem produzido corpos capazes de se projetar num ciberespaço em que se manifestam formas de existir não corpóreas.

Neste espaço virtual, a ausência do corpo permite a identificação com novas identidades, as quais se apresentam como metamorfoses do real, resultando na reinvenção da própria Vida num espaço que não trata da virtualização do real, do possível como algo ainda nascente, prematuro, mas que parte de um real já virtualizado, antecipadamente sintetizado, simulado, inventado, projetado, transcendido.

Assim, a virtualidade atinge hoje em dia a região do nós, do entre, o lugar de estarmos juntos, de nos vermos, nos sentirmos, nos conhecermos. Um lugar de encontro, um lugar de relações, sensações. Espaço em que se disparam sentimentos, afetos e pensamentos. Um lugar de produções de idéias, um lugar em que se constituem novos universos a partir de comunidades e redes interativas. Um lugar de produção de avatares, isto é, consciências encarnadas em novos corpos.

III – Matrix e Avatar: exemplos de uma engenharia social do corpo e de uma projeção digital da consciência. 

Matrix é descrita como um cativeiro, uma prisão, onde os humanos hibernam e são produzidos por máquinas inteligentes. Os humanos passam a ser produzidos em cápsulas eletrônicas e tornam-se alheios a sua condição de profundo coma. A trilogia retrata o coletivo como uma massa condicionada e prisioneira de um programa simulativo do mundo que produz imagens residuais como a projeção mental de um eu digital. 

Avatar é um termo sânscrito que significa a manifestação corporal de um ser imortal ou uma encarnação divina reconhecida como divindade. O filme retrata a projeção da consciência de um corpo para outro, trazendo a tona uma possibilidade de existência para além do corpo. Assim, se transferíssemos nosso pensamento para algum sistema cibernético, qual corpo se formaria ou que aspecto se manteria na projeção da consciência?

Em Avatar, o conteúdo utópico coloca-se com a dominação do espaço, do corpo. A tecnologia assume um caráter mágico, transforma seres humanos em encarnações virtuais de “humanóides primitivos”, integrados eletroquimicamente aos antepassados, às memórias e tradições de seus ancestrais.

Avatar traz uma exaltação da natureza como uma divindade criadora que não ouve preces nem atende pedidos em favor de leis morais porque sua influência se dá pelo equilíbrio retroalimentativo de um ciclo botânico, um sistema vivo e regulado por redes e conexões eletroquímicas, de onde era possível acessar dados, fazer uploads e downloads de memórias.

Em Matrix a questão se apresenta como a superação de um estado de consciência, o tempo. O conteúdo utópico em Matrix está na transcendência de um estado de ilusão que mantém mentes humanas aprisionadas em um programa digital. No Avatar, ao contrário, o conteúdo utópico está na transferência da consciência para outro corpo e não para outro estado mental.

Em Matrix, o personagem simboliza aquele que escolhe ser escolhido pelo ato de escolher ao refletir sobre si-mesmo em outro estado de consciência. No Avatar, ao contrário, o personagem questiona a realidade ao se projetar para outro estado corpóreo da existência, refletindo sobre si-mesmo em outro corpo. Sendo assim, A trilogia Matrix e o Avatar trazem respectivamente a tona uma antiga lenda sobre um sábio chinês que, após um sonho, se questiona se era um sábio chinês que sonhou que era uma borboleta ou se era uma borboleta sonhando que era um sábio chinês.

A continuação desta análise ficará para outro momento. Fiquemos com a reflexão de que virtualidade não é irrealidade, mas a projeção de um possível. No entanto, a realidade se torna virtual quando este se apresenta antes do possível e, assim, define o real, oferecendo à memória e à subjetividade um lugar virtual para a significação de novas experiências humanas e, assim, de constituição do humano que se dá agora num espaço eletronicamente digital.

Obrigado pela atenção.
Luciano Fiscina