quarta-feira, 22 de junho de 2011

Entre o Humano e a Máquina


Teoricamente, seria possível que um computador (entendido no seu conjunto: hardware + software) pudesse reproduzir algum mecanismo com características de um processo criativo? Caso existam limites (admitindo-se que existem), estes são de natureza mais profunda, estruturais, não podendo, portanto ser superados por meios tecnológicos? Em que medida os modelos cognitivos computacionais poderão ser considerados réplicas do processo humano de cognição?

Luciano Fiscina - 15/10/2010

A sociedade cibernética inaugura o contexto que coloca em fusão o mundo real com a realidade virtual por meio de uma tecelagem de redes computadorizadas que tornam muito tênue o limite entre o real e a fantasia. Na sociedade cibernética, o sonho adquire formas fantásticas; ou a própria cibernética já seria o resultado de sonhos fantásticos. No primeiro caso, então, o mundo real seria a falsa aparência de uma vivência tangível; no segundo caso, a realidade virtual residiria nas imagens projetadas por softwares, sistemas de ligações tecnológicas atrelados às redes econômicas que manipulam as operações neuronais por um processo auto-regulador homeostático. 

Isto significa que, atualmente, a abstração do mundo Perfeito ou mundo Ideal aparece como uma proposta de sociedade computadorizada e concernente ao tempo estrutural econômico-científico dos sistemas de regulação que codificam imagens e o programa da realidade vigente. E aqui temos o paradoxo central que se revela na análise ontológica e epistemológica de um computador inteligente que venha a ser também criativo a ponto de automatizar e modelar os processos cognitivos humanos. Entretanto, não vamos explicitar e desenvolver este paradoxo agora. Vamos seguir adiante, procurando contornar alguns problemas de base para em seguida aprofundar no paradoxo que vem a substanciar as perspectivas ontológica e epistemológica subjacentes às perguntas acima. 

Os elos eletrônicos na atual sociedade adjetivada pela Globalização mediam os processos de socialização de modo imanente ao enquadramento institucional técnocientífico. A observação do gênero utópico revelado pelos Sistemas de Computação Global revela algumas tipologias icônicas, imagéticas e simbólicas, que tensionam a relação entre o Tempo e a Natureza para além da concepção cristológica do Fim do Mundo. Por exemplo, uma análise criptográfica da Trilogia Matrix serve como alegoria das conseqüências do exercício da racionalidade técnica levada à sua radicalidade.

A narrativa do Matrix tem uma singela associação com o Mito da Caverna de Platão. Matrix é descrita como um cativeiro, uma prisão, onde os humanos nascem como escravos, porém, de máquinas inteligentes que assumiram o planeta a partir do momento em que os homens queimaram todo o Céu.

Os homens não tinham mais o Sol e decaíram de modo que restaram só as máquinas que encontraram no corpo humano energia equivalente para sua sobrevivência. As máquinas inteligentes passaram a se alimentar de ovos humanos que são cultivados em cápsulas eletrônicas. O elemento central na narrativa é o Tempo; o tempo da queda; o tempo em que o ser humano foi transformado em alimento energético de um grande sistema cibernético que se retroalimenta da morte humana. Matrix é um programa que produz um mundo de ilusões codificadas por processadores que controlam a liberdade. Os homens são prisioneiros de suas próprias mentes, ou ainda, das informações eletroquímicas do cérebro. A Matrix existe como uma simulação neurointerativa; um programa que produz imagens residuais como a projeção mental de um eu digital.

Matrix coloca em questão a problemática de quando o real passa a ser um programa que roda em um computador de modo que o sonho da vida artificial deixa de ser a construção de modelos parecidos com a Vida, mas passa a ser o próprio Modelo, o próprio exemplo de vida. Aqui, então, retornamos ao paradoxo, ou seja, não se trata apenas de uma confusão ontológica entre Criador e Criatura, mas de um problema epistemológica que confunde o conceito de Inteligência com o processamento inteligente de informações.

Para desenvolver esta questão, coloca-se a premissa de base que sustenta a hipótese desta reflexão. A inteligência não vem dissociada do devaneio e da imaginação. Isto significa que um computador criativo precisará imaginar o seu próprio processo de criação e não apenas realizá-lo.

Do ponto de vista ontológico, a vida não é mecânica, mas dinâmica, isto é, auto-regulativa, o que significa que tanto a Vida como a Consciência Humana são os resultados evolutivos de princípios naturais inerentes aos processos genéticos. Deste modo, a Vida feita pela natureza nos tornou humanos, mas a vida replicada por computadores inteligentes ou por uma sofisticada engenharia genética se tornará o que? Qual será o predicado do novo Sujeito da Vida? O cálculo perfeito, a isenção de emoções, processamentos polifônicos, monofônicos, de dados infinitesimais? Isto bastaria para qualificar processos inteligentes?

Uma das principais passagens do texto de Marcelo Maroldi (2006) reflete de maneira muito pontual a questão de base do problema epistemológico, qual seja, o fato de que “a cognição humana é impossível de ser replicada em máquinas por não termos acesso a nossos processos mentais, apenas a representação deles” (Ibid, p. 127). Isto abre outra questão corolária, a arte de fabricação de sofisticados computadores, como o produto dos processos da Inteligência Humana – IH –, poderia refletir [tal como um espelho] a base regulatória e constitutiva da IH de modo a poder ser aplicada heuristicamente no constante produto da ação inteligente da fabricação humana, a inteligência artificial – IA?

Assim, fica outra questão, como equivaler inteligência orgânica com inteligência sintética? Poderia, então, se dizer que tal equivalência seria simétrica a um aparelhamento instantâneo entre o Humano e o Robô. Trataria-se de uma verdadeira revolução epistemológica ao nível em que a ciência se confunde à magia, o cientista ao mago. Imprimi-se aí uma nova questão, há que se observar no mundo do computador inteligente e criativo, modelado por processos cognitivos humanos, a crença, a fé e a teimosia. Um computador criativo não deve apenas saber obedecer ou inovar, mas teimar por acreditar, mais do que isso, por não desistir mesmo com uma coleção infinita de erros. A criatividade geralmente não vem do acerto porque o sucesso consecutivo acomoda, mas vem das estratégias de solução frente ao erro e ao problema, o quebra-cabeça no sentido khuniano.

Trata-se, portanto, de uma fronteira ontológica que torna intransponível a possibilidade de se transformar o produto da imaginação humana em criatividade sintética, uma vez que ela já é o próprio processo da Criatividade elevada muitas vezes ao seu nível máximo, de acordo com os recursos históricos e técnológicos da época. Isto é, há uma irreversibilidade nos mecanismos da vida de modo que a reprodução de uma vida criativa sintética é o resultado obrigatório de um modelo, vindo jamais a ser o próprio Modelo ou mesmo uma replicação e simulação dele. Como diz Umberto Eco (2006), “penso nos computadores difundindo uma nova forma de literatura [entenda-se também aqui como novas Narrativas sobre o Real], mas sendo incapazes de satisfazer as necessidades intelectuais que estimulam”.

Não se pode confundir a busca com a coisa. O qualificador dos processos de cognição humana já se mostra na própria busca sem limites, sem fronteiras, atingindo o inimaginável e atravessando o horizonte do possível ao nos lançar no virtual com redes eletrônicas que satisfazem desejos sensoriais [reais]. O humano é inesgotável, nesta sede está o motor da criatividade com o combustível da Vontade, a volição. O computador criativo modelado por processos cognitivos humanos é a coisa, o objeto da criação, o produto da inteligência imaginativa do criador. A coisa é uma síntese temporária. A busca é uma análise permanente. Um é o produto o outro é o processo. Um é a imagem, o outro o caminho, a dúvida com suas bifurcações e sistemas de significação não lógicos e afetivamente tautológicos.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

O Ser e o Infinito



Para o grande físico do séc. XVIII, Isaac Newton (1642-1727), a idéia de espaço se apresenta como uma extensão sensória de Deus. Atualmente, se encontram na Cambridge University alguns dos manuscritos de Isaac Newton que expressam sua visão conceitual acerca do espaço, lugar, tempo e Deus. Tratam-se de scholium que datam de 1690 e expressam concepções acerca do que matém "a duração no tempo" e a "presença no espaço".

Deus e o espaço são caracterizados pelas idéias de perfeição e infinitude. Newton argumenta que o espaço é infinito enquanto extensão. A seção I do Manuscrito estabelece que todas as coisas estão no espaço e no tempo com respeito à amplitude da presença e duração da existência. Newton argumenta que a quantidade da existência de cada coisa atual, que Deus incluiu, é denominada amplitude de presença e perseverança na existência.

A principal proposta da passagem é argumentar que o que "nunca está" e "em lugar nenhum está" não pode ser dito existir. "Para todo ser absoluto, há uma maneira adequada de cada coisa em si mesma ser no espaço". Todas as coisas estão no tempo enquanto duração da existência e num lugar como a amplitude da presença. Assim, o que nunca está e em lugar nenhum não está na rerum natura.

Segundo Newton, todas as coisas são dadas para suportarem/permanecerem permanentemente apenas em relação ao espaço e o tempo absolutos. Como tal, eles existem independentemente de serem percebidos; isto significa que movimentos e mudanças são medidas apenas senso-temporais. Essas medidas se fundamentariam na experiência das mudanças sucessivas e sensíveis que pertencem às coisas "ou nas próprias mudanças julgadas em função das outras coisas percebidas".

Deste modo, haveria um padrão uniforme do movimento por meio do qual a duração sucessiva de uma coisa dada seria estabelecida. Newton assume que pelos refinamentos progressivos, as medidas do movimento relativo podem se aproximar do movimento verdadeiro e absoluto. "A duração de uma coisa não é o seu fluir, ou qualquer mudança, mas a permanente imutabilidade no fluir do tempo. A duração de cada coisa flui, mas suas substâncias não fluem e não mudam a respeito do antes e do depois, mas sempre permanecem as mesmas".

Nesta perspectiva, Newton introduz no espaço os conceitos de infinitude e perfeição. Entretanto, infinitude não significa perfeição, mas a maneira como as propriedades se manifestam. No entanto, as perfeições da natureza divina seriam diferentes do espaço absoluto. O espaço seria um atributo de duração e magnitude. Assim, o espaço seria a consequência da existência sempre eterna de Deus. Ele existe porque Deus existe em duração e magnitude. O espaço seria todo tempo co-eterno com a interminável existência de Deus.

No sistema newtoniano, a idéia de amplitude da presença se relaciona com as noções de quantidade e perseverança na existência. As coisas existiriam no tempo como duração da existência e no espaço enquanto amplitude da presença.

Nas condições absolutas do espaço-tempo, a duração da existência se liga à idéia de imutabilidade ou não-fluir do tempo; isto é, residiria na permanência do que é; as substâncias necessárias não mudariam entre o antes e o depois. No sistema newtoniano, a idéia de infinitude não é aplicada ao Agente-Deus, mas ao seu domínio, que é o espaço enquanto extensão.

Para Newton, a causa primeira seria estendida e, por isso, infinita. Contudo, a infinitude não seria infinita, mas um atributo, uma característica intrínseca que não só adjetiva, mas substancializa o domínio pertencente ao Infinito.

Renée Descartes (1596-1650) buscou uma filosofia do infinito e do contínuo, relacionando o espaço não a Deus, mas à matéria. No sistema cartesiano, não é possível pensar no espaço sem a presença de matéria. Como diz Gilles Granger, isto significa que toda alteração do estado de movimento de um corpo qualquer pressupõe uma causa material. O mecanismo cartesiano relaciona a idéia de perfeição com o princípio da constância da quantidade de movimento, lei da inércia. No sistema de Descartes, a concepção de espaço é entendida a partir da presença de um corpo e a idéia de perfeição está ligada ao princípio que mantém a quantidade de movimento do corpo.

Entretanto, nas condições absolutas newtonianas, a causa perfeita já seria estendida e a idéia de perfeição seria a imutabilidade do não fluir do tempo nessa extensão. Em uma carta a Descartes, Henry More (1614-1687), conhecido como um dos "platonistas de Cambridge", atacou a identificação cartesiana entre matéria e extensão dos objetos no espaço, afirmando: "Deus parece ser uma coisa estendida (...)". Henry More considerou que todo espaço contém alguma substância, mas ele nega que a substância é corpórea. Essa substância seria de dois tipos, matéria e espírito: o primeiro seria inativo, impenetrável e disperso (divisível em partes); o ultimo seria ativo, penetrável, não disperso e não divisível. More construiu demonstrações físico-geométricas, como a projeção de dois eixos que formam um cone interno para provar a existência de uma variedade especial de espírito, uma extensão imóvel e distinta da matéria. O experimento de More consistia em um cilindro que resultava da projeção de um cone interno que se formava a partir de dois eixos. More entendia o espaço interno que se formava na projeção dois eixos como "alguma coisa a mais"; o "lugar interno", o qual tem extensão, mas não é visto de fora.

O lugar interno do espaço seria uma substância correspondente ao vácuo atomista e se espalharia e se difundiria no Universo. Sobre o vazio, More o entendia como a substância respirada pelo universo. "O vazio estaria para o cosmos como o ar está para os animais". Todas as coisas vivem, movem-se e subsistem na divina amplitude. A noção de espaço, para o filósofo, está implicada na idéia da extensão de Deus. Para More, Deus habita todo o universo e ocupa toda parte do cosmos intimamente, assim como a alma habita todo o corpo. "A onipresença é um atributo essencial de Deus porque seria contraditório limitar a presença de uma essência absolutamente perfeita". A presença de Deus seria estendida e mensurável, mas não divisível, nem composta de partes. O lugar interno do espaço, apesar de possuir três dimensões, é distinto dos corpos. O filósofo de Cambridge tenta, assim, refutar as objeções cartesianas, atribuindo imobilidade, imaterialidade e extensão às características da onipresença de Deus.

As contribuições de Joseph Raphson (1648-1715) também são fundamentais para essa questão. Joseph Raphson traduziu o trabalho de Newton Arithmetica Universalis, sendo (ao que parece) uma das poucas pessoas que Newton permitiu ver seus escritos matemáticos. Raphson também critica a concepção de Descartes de que a matéria e extensão são a mesma coisa; e também critica Thomas Hobbes, como, "precipitada identificação da substância com a matéria". "O filósofo deve respeitar os limites sobre o entendimento humano. A mente pode conhecer algumas das propriedades das coisas, mas ela não pode conceber a totalidade da essência do ser real".

Raphson discute o conceito infinitude, distinguindo-o do infinito. Os antigos Rabinos propuseram que Deus é infinito, mas não é infinitude. A infinitude é uma propriedade do espaço, é uma propriedade de Deus; é sua extensão, mas não é Deus. A imensidão de Deus é difundida em todo lugar do espaço cósmico. O espaço em si é infinito, mas a coleção das coisas em movimento contidas no espaço é finita. O espaço é um atributo da Primeira Causa. Sua perfeição consiste em indivisibilidade, imobilidade e incorporealidade. Trata-se do seguinte silogismo: extensão é perfeição; nenhuma causa pode produzir a perfeição; logo a primeira causa é estendida, infinita, imutável, perfeita. A Primeira Causa é estendida, incorpórea, indivisível. Por isso, está presente em tudo, penetra tudo. Mas, é separada de tudo e distinta em essência. A idéia central é que a presença das coisas criadas exige a presença universal de suas causas, Deus, cuja presença é inconcebível, a menos que Ele seja estendido. A extensão das coisas materiais no espaço pode ser imperfeita, mas a extensão do espaço, Deus, é infinitamente indivisível em perfeição. Raphson cita Malebranche (1638-1715), filósofo francês, para testemunhar que Deus pode possuir a perfeição da matéria sem ele mesmo ser material, e relembrando a linguagem remanescente da obra de More, o filósofo imagina a matéria como uma vaga sombra neoplatônica da divina extensão, uma vez que em Platão o atributo da extensão é imperfeito. Os defensores do espírito alegaram imperfeição à extensão; para eles, o Divino não é estendido, mas encoberto e escondido.

Na antiga concepção judaica do espaço, por exemplo, encontra-se o termo makom que corresponde ao mistério escrito no Êxodo (33:21): "veja há um lugar comigo". Contudo, makom (lugar) implica que Ele é o lugar do mundo, mas o mundo não é seu lugar. Na filosofia de Henry More, Joseph Raphson e Isaac Newton, o espaço se apresenta como diferente da matéria. O espaço é o atributo da Primeira Causa, sem esquecer John Locke, empirista que fez da extensão do espaço um atributo de Deus.

Contudo, para Newton, o espaço não seria especificamente o atributo de Deus, mas constituiria o espaço do seu domínio. As perfeições da eternidade e infinitude têm menos a ver com o caráter essencial de Deus e mais com o seu domínio. Como diz o estimado filósofo alemão Ernst Cassirer, é Baruch Espinosa (1632-1677) que reinaugura o vínculo entre homem e universo numa verdadeira dialética do intuitivo, a atividade que faz passar de um saber passivo e fechado sobre si próprio a um conhecimento ativo, combinatório e aberto.

Newton e os filósofos ingleses trataram da extensão como um atributo da infinita perfeição do domínio de Deus; a infinitude do espaço lembra a presença do infinito. Renée Descartes trata da extensão como um atributo dos objetos, não do espaço nem do pensamento. Já Espinosa não distingue pensamento e extensão, uma vez que o corpo seria inerte se a alma humana não fosse apta a pensar; e a alma estaria limitada, se o corpo não fosse apto a agir. Para Espinosa, pensar em Deus como causa demonstra que Ele é coisa pensante e não poderia ser pensado como um atributo do espaço.

A demonstração lógica de Espinosa leva a pensar que se a tese fosse outra, a extensão acabaria determinando o pensamento da alma. Espinosa atesta que "o que determina a alma a pensar é um modo do pensar e não da extensão". Mas, Espinosa também não desconsidera que a alma, enquanto pensamento, não seja afetado por um modo da extensão. O apetite da alma e a determinação do corpo são coisas simultâneas. Espinosa elucida que o ato de falar é um movimento do corpo, embora a decisão tenha sido da alma. Neste sentido, extensão e pensamento se relacionam enquanto Ideia.

A ética espinosana trabalha a liberdade não a partir da ação ou da consciência da ação, mas da consciência das causas que orientam a ação. A essência da alma é a ideia de um corpo existente em ato. A energia correspondente a ação se manifesta como conatus, o modo pelo qual cada coisa se esforça por perseverar na sua existência e na sua Ideia.

Esse grau de perseverança é acompanhado de uma consciência do esforço e tem uma durabilidade indefinida, uma vez que a alma tende a permanecer neste estado a não ser que seja afetada por uma causa externa. A questão sobre a perseverança na existência, para Espinosa, não pressupõe uma durabilidade, mas o tempo do ser - O esforço que permite uma coisa existir continua a existir do mesmo modo indefinidamente a não ser que seja "destruído por uma causa exterior".

Espinosa diz que se alguma coisa aumenta ou diminui a potência de ação do corpo, a ideia dessa coisa que aumentou ou diminuiu a potência de ação do corpo aumentará ou reduzirá, na mesma medida, a potência da alma. A espacialização da presença a partir de idéias adequadas acompanha paixões de perfeição maior, como a paixão da alegria. Esse estado de existência aumenta a potência da alma infinitamente. Em outras palavras, quando a raiz da alma é a Ideia enquanto potência infinita do Ser, ela se expande em infinitude.

Como diz Espinosa, a alma tende a imaginar aquilo que ama; aquilo que favorece sua potência de ação. Existem imagens que dão existência a coisa amada por meio das quais o esforço da alma, o conatus, tende a imaginá-la. Aumentar o que se gosta começa na extensão do pensamento; destruir o que não se gosta também. No próprio esforço da alma em aproximar pensamento e extensão já residiria, para Espinosa, sua própria essência e potência. Seria nesta conjunção que a alma ao manifestar o que é também manifestaria o que pode.

A ideia de infinitude não estaria ligada propriamente ao espaço, mas ao pensamento, uma vez que é por meio dele que as condições interiores de um espaço livre são produzidas. O espaço seria produzido na relação concomitante entre pensamento e ação. Pensar um indivíduo livre, nessas condições, implica em pensar em um indivíduo que se movimenta num espaço em que ele não se distancia de seu próprio eixo de ação, a Ideia adequada.

Nessa abordagem, o poder de espacialização é uma condição dada não propriamente ao espaço, nem ao lugar em que o indivíduo ocupa neste espaço, mas ao pensamento. Shakespeare escreveu em Hamlet: "poderia viver recluso numa casca de nós e mesmo assim me considerar rei do espaço infinito".

Assim, o termo durabilidade da existência, tal como aparece em Newton, em Espinosa não indica nada a respeito da existência de algo, mas da sua essência enquanto esforço para continuar existindo. A mera existência, para Espinosa, não tem conexão alguma com a essência, ela não indica a dinâmica íntima da coisa em-si. Isto é, o atributo da infinitude estaria mais ligado à própria essência como esforço em estender o pensamento do que a uma propriedade característica do espaço.

A durabilidade da existência, então, não deve ser considerada a partir de um enfoque do tempo, mas como um dado aspecto da eternidade. Para Espinosa, o princípio ou virtude que oferece existência às coisas diz respeito ao princípio que as fazem perseverar em seu ser.

A essência é o movimento da mudança que se mantém via o princípio da conservação/perseveração. Assim, o mesmo princípio que cria a originalidade do ser o mantém perseverante no movimento. Existir não seria exatamente um fluir de ordem temporal, de durabilidade e extensão métrica, mas um modo próprio de espacializar o pensamento na ação. Durar no tempo diz alguma coisa da quantidade da existência; espacializar-se na ação diz mais a respeito da qualidade da essência.

Pitágoras representou o número um da seguinte maneira: 1 = 0 x ∞.

Agora, se substituirmos o número um pelo termo indivíduo; o zero pelo conceito de potência; e o infinito pelo ato libertário do pensamento, o que também podemos denominar como força poética no sentido do devaneio de Bachelard, temos o seguinte axioma: a poética se produz no ato libertário do pensamento, cuja potência da raiz é dada ao infinito.

Deste modo, na equação da experiência poética, a raiz infinita do indivíduo é o seu ponto zero -

∞√∆ = (.0).

Pelas leis da física, o ponto zero é o momento em que um corpo tende a se mover no espaço e no tempo. Ou seja, a multiplicação da potência pelo infinito é igual a sua capacidade de devanear, imaginar. Foi Albert Einstein quem disse que uma mente que se abre para uma nova idéia jamais retorna ao seu tamanho original em extensão, amplitude e intensidade.

Desse modo, o tratamento matemático do intuitivo oferece à razão a possibilidade de construção do real. Na geometria da imaginação, o concreto se abstrai.

Os árabes trouxeram o conceito de zero da Índia e o transmitiram para a Europa. Na filosofia indiana, a idéia do zero está ligada a idéia do ponto que seria a representação matemática em termos de espaço do encontro entre o manifesto e o não-manifesto. O ponto em que o não-manifesto aparece como manifesto. Ou seja, a força da consciência emerge no plano a partir de um ponto.

De acordo com o indiano Ikbal K. Taimni, "O fato de um ponto ter 0 dimensões possibilita penetrar nos mundos de qualquer número de dimensões, positivas ou negativas". Pensar sobre a natureza do ponto faz pensar que um número infinito de pontos pode coexistir um dentro do outro e um ponto poderia conter um número infinito de outros pontos. O ponto é o local de encontro entre o que seria não manifesto e o que viria a se tornar manifesto. Isto implica que o ponto corresponderia a um instante matemático da consciência na medida em que ela atuaria em referência a um centro.

Assim, todo o espaço é reduzido a um ponto matemático ideal. A fórmula acima representa a idéia de um ponto ideal da consciência que coloca o indivíduo entre a potência (o não manifesto) e o ato (manifesto). A consciência estabelecida nesse ponto reflete a amplitude da sua existência a partir da relação entre potência, pensamento e ação.

A natureza de um processo depende do seu ponto zero. A natureza desse ponto vai determinar a qualidade do pensamento e a quantidade de ação, enquanto capacidade de esforço, perseverança e empenho na existência (do Ser). O ponto zero é a referência interna do espaço em que se movimenta a consciência. Essa medida interna do tempo implica na quantidade de atuação da consciência mediante seu eixo de ação, a Ideia. Do ponto, surgem todas as variáveis geométricas. Do ponto surge a linha, a superfície e os sólidos geométricos.

O papel peculiar do ponto é que ele tem zero dimensões; o fato oculto do ponto zero é que ele inclui nada e tudo; a parte curiosa é que sem ele nada parte e apenas a partir dele tudo se forma.

A natureza do ponto zero é ser potencial, por isso ele envolve todo o infinito. Há uma aparente oposição entre o zero e o infinito, uma vez que se estamos conjugando o zero a partir de um ponto, como pensar o infinito antes dele?

O que parece ser dual é, na verdade, condição de necessidade. O infinito se apresenta como infinitas funções de probabilidades que coexistem no ponto. Por ele ainda não ser nada, poderia vir a ser tudo. O ponto enquanto condição zero retém o vir-a-ser, não podendo desaparecer quando atinge seu fim ideal.

Então, não é que Pitágoras chamou Deus de Geômetra !

Há somente nove números fundamentais 1 – 9, os seus derivados dependem de duas outras margens matemáticas que não são propriamente os números - 0 e ∞. O elemento zero se apresenta no sistema védico-hindu como o recipiente potencial, desconhecido, indefinível, de todos os números e de todas as relações matemáticas. "É o gerador da matemática". O número zero corresponde à manifestação de uma integração e harmonização "de maneira tão perfeita que ao intelecto parece um vazio".

Deste modo, essas onze entidades matemáticas não são apenas as realidades básicas da matemática, mas correspondem aos aspectos da existência humana no sentido de que a infinitude depende de um ponto.

O zero, então, não é o centro do nada, mas de tudo, uma vez que nele reside a infinita potência da probabilidade de um vir-a-ser. Este vir-a-ser é equacionado na fórmula pelo número 1, o qual implica na potencialidade e individualidade da manifestação, "pois sem um centro de individualidade não pode haver manifestação", diz o indiano.

Na ciência contemporânea, é na teoria quântica dos campos onde o vazio aparece como uma coisa extremamente complicada e fundamental, como os sistemas de flutuação no vácuo, em que os fótons descendem de estados excitados. Há na física quântica um conceito interessante que é o comprimento de Planck, a constante gravitacional de um comprimento de luz. Este comprimento é extremamente pequeno, da ordem de 10 ¯ ³³ cm. Este comprimento corresponde ao ponto métrico mínimo para além do qual só resta a infinitude e a imaginação, seja científica ou poética.

terça-feira, 14 de junho de 2011

A Psychosocial Analysis of Historical Method: Blood and Wine


Uma Análise Psicosocial do Método Histórico: Sangue e Vinho
Resumo
Este artigo é uma análise crítica do método da hetero-auto-análise por meio do qual o historiador francês Jean Pierre Raymond Goubert tratou do conceito de Identidade. A partir da relação que estabelece entre o ciclo do vinhedo e seu ciclo genealógico, este trabalho analisa o método de reconstituição do historiador acerca do imaginário do vinho, destacando o operador psicológico do seu modelo explicativo que se constitui na dimensão do Sagrado. O vinho é tratado no tempo estrutural da esfera psicológica como Elo necessário entre a sociedade e o Ideal da Razão; o elemento regulativo e constitutivo entre o presente e o passado. O vinho representa a dimensão do acontecimento histórico; o sangue ennvolve a relação estrutural com o passado. Este artigo é uma análise crítica e epistêmica do método histórico por meio do qual procura-se refletir a relação entre identidade, narrativa e estrutura.
Palavras-Chave: identidade, sangue, vinho, passado, presente.
Abstract
This paper is a critical analysis of the hetero-self-analysis method by which the French historian Jean Pierre Raymond Goubert treated of identity concept. From the relation established by his own between the vineyard cycle and his genealogy, the aim is to analysis the reconstitution’s method of historian about the wine’s imaginary pointing out the psychological operator of his explanatory model whose constitution lies on Holy dimension. The wine is treated in the structural level of psychological sphere as the necessary link between the society and the Ideal of the Reason; the regulative and the constitutive element between the present and the past. The wine represents the dimension of the historical happening; the blood involves the structural relation with the past. This paper is a critical and epistemic analysis of the historical method by which it reflects the relation between the identity, the narrative and the structure.
Key-Words: identity, blood, wine, past, present.

I – Introdução
O leitor não estranhe ao perceber que o autor deste artigo está iniciando-o na primeira pessoa, embora não vá permanecer nela por muito tempo. Este artigo é a reflexão crítica de uma história oral que conta sobre uma relação poética entre o imaginário do vinho, o ciclo do vinhedo e o ciclo genealógico da humanidade, com forte destaque para o conceito de Identidade, tão caro à Psicologia Social.
O que comentarei chegou a mim por imagens narradas, mas aos caros leitores chegarão as minhas palavras, minhas elaborações e minhas reflexões críticas do que pretendo analisar. Na verdade, vou discutir o método por meio do qual a história sobre o imaginário do vinho foi contada. Quando começar esta análise, o sujeito da primeira pessoa terá que sair do texto.
 Para o autor deste artigo, esta história chegou como uma síntese, como uma narrativa da origem. Chegou como uma história contada na primeira pessoa. Ao leitor, espera-se que a mesma história chegue como análise, pois há a minha interferência na interpretação do que pretendo apresentar e comentar. Mas, a análise também carrega o seu duplo original, a síntese. O tempo da análise parte de uma síntese primordial [o endereço da partida] e sem a qual a própria análise não teria qualquer substrato elementar.
Não por acaso, então, este texto começa sendo escrito na primeira pessoa. O intuito é demonstrar que ele parte de uma síntese. Por isso, com minucioso cuidado, é possível perceber que o título deste artigo pressupõe uma epistemologia encapsulada, isto é, a compreensão do que pretendo comentar também é a elaboração de uma experiência de vida, uma memória que se constituiu de tal forma que é difícil dizer o ponto em que ela deixa de ser sintética para ser analítica; o ponto em que me separo analiticamente da experiência de modo que ela se distancie enquanto objeto, promovendo uma separação moral entre eu e os conteúdos da minha memória pessoal. O ponto em que esta memória se torne tão impessoal de modo que o juízo não seja comprometido por nenhuma relação de consanguinidade com o passado. Afinal, não por acaso, ao menos juridicamente, laços consanguíneos não podem ser testemunhais. O sangue compromete.
O sangue corresponde à relação estrutural com o passado, com a origem, com a identidade, o que se revela no sentido genealógico do termo. Mas, há também um domínio semântico para a palavra “sangue” que se manifesta na adoção arbitrária, porém necessária de um significado estrutural entre presente e passado. A palavra sangue assume aqui uma função mais epistemológica do que fisiológica. Ela sugere a unidade estrutural que se aplica à relação entre passado e presente; a identidade que se constitui entre a narrativa e a estrutura.
A questão é que apesar do sangue estabelecer o tipo de relação mais estrutural possível com o passado, ele não se inscreve apenas numa fonte genealógica de registros históricos, de fatos históricos e de verdades históricas que antecedem estruturalmente e, portanto, consanguineamente, uma dada história de vida. Relações consanguíneas com o passado não implicam na determinação de um passado sintético, acabado, morto, enterrado.

A perspectiva estrutural não precisa preterir politicamente o presente ou o poder histórico do contemporâneo para afirmar a força tradicional do passado analítico, como sugere Marc Bloch (2001) quando critica a psicologia dos testemunhos pelo fato de que os componentes da narrativa são muito imediatos.
 O operador da realidade é destacadamente psicológico. O que significa que relatos históricos estão embebidos de estados psicológicos e o passado pode, deste modo, se abrir a novos testes, novas provas, conforme o passar das gerações. O passado, então, pode ser ressuscitado. Contudo, o tempo da ressurreição é o do presente.
 As relações estruturais com o passado são significadas pelo presente e pressupõem um Valor, o significado, que assume a Função de Referência Temporal em determinada equação histórica. Relações estruturais envolvem implicações semânticas, o que significa que o Valor passa a representar o Ideal, o que “deveria ser” frente ao que “não foi” ou que “infelizmente foi”.
O tempo tem outros gêneros narrativos que não são unicamente o da História. Neste sentido, o Passado não se mostra apenas à luz do que “foi”, mas do que “deveria ser”; a história guarda o tempo que se coloca como o futuro perfeito a espera de ser realizado. O tempo que não se realizou no passado imperfeito e que continua presente no seio do coração humano, inspirando as revoluções e renovações sociais. O perfeito assume a função de espelho do real, a forma que determina a reflexão da imagem e atua como referência semântica e estruturante nas narrativas da Origem.
O método de reencontro com o passado se constitui no tempo da análise. O tempo de vivência do presente se constitui no tempo da síntese. No séc. XIX, um termo foi bastante empregado para se fazer análises históricas, comentário. Esta nomenclatura aparece a partir de uma crucial necessidade dos analistas, separar o narrador do acontecimento; o presente do passado; a síntese da análise; o autor do texto.
A cultura do comentário estabeleceu o lugar do historiador e o texto assumiu uma sacralidade como fonte e como origem. O comentário como método da análise histórica separou a noção da síntese entre o a priori e o a posteriori. Uma coisa é chegar aos elementos a partir de uma análise crítica; outra é partir de certos elementos concebendo-os como necessários e independentes da experiência.
No entanto, o mais claro exercício da análise do comentário ainda chega aos ouvintes como síntese, uma vez que o historiador acaba produzindo efeitos de verdades carismáticas por representar os olhos mediáticos de um presente contemporâneo; os olhos da principal testemunha com o passado – Histor – a testemunha que viu – ópsis. O historiador faz crer o que o olho escreve (Hartog, 1980). Na análise histórica, a visão é sempre uma constante epistemológica que regula o testemunho. A autópsia do historiador busca a relação estrutural entre o ver e o dizer.
No entanto, quando o relato histórico passa a explicar o passado, ele assume uma determinada necessidade, tornando-se muito difícil discernir o fato histórico da percepção psicológica da realidade; a memória do julgamento; a lembrança do falseamento ou reconstrução do real.
Como ressalta Hobsbawn (1998), explicar o avante da narrativa histórica necessita reconstituir seus determinantes causais pelo uso das idéias para explicar a História. Neste sentido, poder-se-ia dizer que, por um instante, o historiador e o psicólogo se colocam juntos no âmago da alma humana, onde começa o princípio inteligível da História (Hartog, 1998).
A História deriva da necessidade de construção da memória social e o discurso do historiador tem que chegar à dimensão do acontecimento, o que implica na narrativa do fato do que realmente aconteceu. Neste sentido, o acontecimento histórico é de onde o historiador parte e não aonde chega. Parte da etnografia retrospectiva por meio de uma descrição densa e, ao mesmo tempo, minuciosa, entre tempo e espaço; narrativa e acontecimento.
No entanto, a dimensão do acontecimento, da conjuntura e da estrutura são os níveis de realidades constituintes de quatro esferas, conforme descreveu Weber, esfera econômica, esfera social, esfera cultural e a esfera psicológica. No entanto, o historiador Fernando Novais (2010) propõe uma renovação da interpretação braudeliana e marxista da História, introduzindo esses níveis de realidades em todas as esferas da existência, separando, assim, as esferas da existência da estrutura econômica; diferenciando, da mesma forma, interpretação econômica da história do materialismo dialético a partir de um logos supostamente existente entre as esferas da existência e os níveis de realidade.
A formação das ciências sociais é um percurso do fim do século XVIII para o XIX, e, como diz Novais (2008), a partir daí a História passa a ser moderna. Antes da modernidade, as ciências sociais não existiam. “Porque as ciências sociais nascem dentro da História a partir do momento em que se tem a sensação ou a necessidade de explicar certas esferas da existência” (Novais, 2008; p. 5). As ciências sociais nascem com a intenção de precisar seu objeto de estudo num modelo que aborda uma única esfera da existência por entender a impossibilidade de se abarcar todas as esferas.
O discurso sobre a esfera social da existência surgiu ao longo do séc. XVIII, enquanto que o discurso sobre a esfera econômica da existência surgiu no séc. XIX; e o materialismo histórico surge no séc. XX. A diferença entre História e Ciências Sociais se apresenta na preocupação da última em tratar de uma esfera da existência de forma delimitada, buscando formular conceitos.
Como diz Novais (2008;2010), o historiador (em-si) não tem o objetivo de precisar graus de conceitualização, nem de elaborar alguma cientificidade sobre o objeto pela formulação de um conceito. O grau de apreensão entre ambas as abordagens é diferente. “A história sacrifica a conceitualização pela totalização, enquanto as ciências sociais sacrificam a totalização pela conceitualização” (Novais, 2008; p. 10). Para o cientista social, a reconstituição é o meio e a explicação é o fim. Para o historiador, o meio é a explicação, o fim é a reconstituição. Entre explicar para reconstituir e reconstituir para chegar à explicação está a diferença entre História e Ciência Social. Mas, o imperativo, em ambos os métodos, é o regresso na série de condições.
Na esfera psicológica da existência, os fundamentos do regresso e os princípios regulativos são coordenados pelo Ideal da Razão. Como diz o filósofo Immanuel Kant (1787), na Seção Oitava da Antinomia da Razão Pura, “Princípio Regulativo da Razão Pura com Respeito às Idéias Cosmológicas”, é no regresso que o princípio da razão se preserva.
Segundo Kant, o princípio da razão é uma regra que prescreve um regresso ao qual jamais é permitido se deter num absolutamente incondicionado.
Não se trata de um princípio constitutivo da razão, mas de um princípio da continuação e ampliação da experiência sem que nenhum limite empírico prevaleça como absoluto. Apontar o que o objeto é refere-se ao princípio constitutivo da razão, o que não é possível a partir da razão pura. Assim, se a série nunca é completa, como estipular a síntese na série da regressão?
 Este regresso não se estende ao infinito, mas a uma extensão indeterminável. Neste sentido, a pergunta não se refere ao fato dela ser finita ou infinita, mas como se deve levar a cabo o regresso empírico e até onde devemos prosseguir com o mesmo, uma vez que sempre há mais membros do que o regresso atinge; e sempre se pode ir mais longe já que nenhum membro é empiricamente dado como absolutamente incondicionado o que admite um membro ainda mais elevado como possível e, portanto, a perquirição como necessária (Immanuel Kant, 1787; p. 93).
O Ideal é a referência que dá sentido à Razão na reconstituição do passado, determinando as regras a priori da análise retrospectiva. Uma idéia se purifica até o ponto de um conceito determinado de modo completamente a priori. Para Kant, um conceito completamente determinado mediante uma simples idéia denomina-se ideal da razão pura. O uso da razão põe o ideal transcendental como fundamento que representa a determinação completa e necessária das coisas. E o ideal completa a série das condições que são reconduzidas aos seus fundamentos. ­­­
Neste panorama de reflexão, este artigo analisa o método da hetero-auto-análise que pretendeu unir o vinho ao ideal da vitória, da saúde, da sociedade perfeita, da fraternidade e à idéia de Identidade. A narrativa sobre o ciclo do vinhedo parte do Sagrado que se reporta à Tradição, ao Passado e à Memória. O referencial desta análise é o tempo histórico braudeliano nos três níveis de realidade, estrutura, conjuntura e acontecimento, porém refletindo-o na esfera psicológica da existência e não na esfera econômica.
O vinho é discernido como o aspecto geracional do presente; o acontecimento que sempre pode despertar um novo sabor e uma nova degustação. A memória é discutida como as condições de inteligibilidade da relação lógica entre presente e passado; o princípio regulativo que liga a estrutura ao acontecimento.
A memória representa o engradado que traz o passado dentro e aonde se inscreve o rótulo da Origem. A dimensão estrutural é o longo passado em que se inscreve o Sagrado. O termo sangue se reporta à metáfora, “o espírito que circula em seu sangue”, por onde escorre a ancestralidade e a hereditariedade.
Este artigo é uma análise crítica da narrativa que procurou unir a natureza semântica do vinho, a função da terra e a compreensão ontológica da própria Origem, de onde partiu o narratário ao falar sobre o vinho. O artigo reflete o ponto de encontro entre o imaginário do vinho e o imaginário do historiador. Espera-se esclarecer como a dimensão semântica do vinho se mistura com sua respectiva ancestralidade sanguínea, moral e social.
O caráter inaugurador deste artigo é a reflexão epistêmica sobre do papel da testemunha e seus efeitos de enunciação enquanto produção carismática de crenças ao falar sobre o passado. Espera-se demonstrar que o método de reconstituição de nosso historiador [testemunha] apresenta um operador psicológico na via explicativa que parte da Origem e chega ao Sagrado, o qual se constitui em toda a série de regressão pelo conteúdo vinho.
A tarefa explicativa se manifesta na associação entre a própria genealogia, o ciclo do vinhedo, o imaginário do vinho e sua oferta como elo de socialização que regula a fraternidade, a vitória e a sociedade perfeita. O sangue representa o passado; o vinho, o acontecimento; a testemunha simboliza a prova que registra a memória do acontecimento e oferece o passado à degustação do presente.

II – Do Sangue ao Passado; Do Vinho à Testemunha

O historiador francês Jean Pierre Raymond Goubert é um descedente de vinhocuores franceses que se propõe a estudar o conceito de Identidade ao refletir o ciclo do vinhedo por uma perspectiva genealógica. Ele apresenteou recentemente um ciclo de seminários no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo por meio dos quais procurou relacionar o imaginário do vinho a uma sede de perfeição.
Os seminários foram divididos em três tópicos: “O sonho do Divino: Vitória sobre a morte e presença da vida”; “O sonho de uma saúde perfeita: de Hipócrates ao paradoxo francês”; “O sonho de uma sociedade perfeita: vinho e fraternidade”. Destas três subdivisões, quatro termos têm um forte destaque enquanto classes formais de pensamentos; ideais dos quais o historiador parte para reconstituir o imaginário do vinho: a vitória, a saúde, a sociedade perfeita e a fraternidade.
O método de reconstituição de Goubert (2010) se confunde enquanto tarefa explicativa quando se manifesta a associação com a própria genealogia – o sujeito – para falar do vinho – o objeto. O historiador expressa suas premissas argumentativas a partir do ponto de encontro entre o ciclo do vinhedo e seu ciclo genealógico de tal modo que é difícil separar o imaginário do vinho do imaginário do narrador.
Antes de falar sobre o vinho, o historiador começa por sua história de vida, pela narrativa da sua origem, para tratar de um elemento que o transcende e, de certa forma, o determina, a tradição do vinhocultor que representa a memória do seu passado; seu calendário de vida; o cheiro da terra; as estações do ano; os períodos de safra; e os instantes de celebração que datam sua memória pessoal e produz sentido e significado [função e valor] na narrativa que busca reconstituir a memória social da vinhocultura e o imaginário do vinho, que se revela na história das festas aristocráticas, populares, profanas, nos ritos litúrgicos e medievais. O vinho é circunscrito no tempo e na memória; no espaço e na sociedade; no prazer e no sagrado, quando é incorporado na liturgia cristã. Ele é apresentado como um patrimônio cultural que exterioriza as relações entre o sagrado, o poder, o econômico, a sociedade, a saúde, o imaginário e o prazer.
O historiador apresenta o vinho como um elemento de celebração e ritualização, representado na busca da perfeita comunhão com a natureza. A explanação teórica alude à idéia de fusão com a terra, identificada como a santa mãe e o ventre com a fertilidade do solo. O vinho é introduzido como o filho da Senhora natureza e, ao mesmo tempo, o princípio de identidade com o passado. O culto, como a cerimônia de Avignon, é um encontro com as raízes da terra; com as raízes do passado; com as raízes da uva. Novos vinhos, todo ano, com novas festas e degustações, é o que muda enquanto conteúdo no antigo engradado das tradições.
Como diz Goubert (2010), a garrafa é sempre a mesma; é o vinho que muda. Deste modo, o vinho é simbólico porque é identitário; é elemento de socialização na constituição de elos sociais, de memórias sociais e da saúde social. No entanto, para se abrir o engradado da memória e o que subjaz sua constituição, necessita-se, assim como com o vinho, de um saca-rolha, metáfora descrita por Goubert para a técnica maiêutica de um saber que manipula e traz para fora o que está dentro; e o que está oculto se apresenta ao sabor, à experiência vivida na exata medida.
Não por acaso, as duas palavras latinas, sapere (saber) e sapore (sabor), têm o mesmo radical; o saber tem sabor, mas na medida errada, pode entorpecer e confundir, azedar e amargar. Isto é, degustar o vinho é abrir o engradado da memória; abrir o engradado da memória é saborear lembranças. O vinho implica degustação, sensação, corporeidade, textura, presentificação do corpo pelo gosto, sabor e aroma que ele desperta.
A memória, da mesma maneira, implica num agente. Como dizem, sem o historiador não há o arquivo; sem o sujeito não há a memória. Abri-la implica numa ação política e metodológica que sempre se dá no presente. Explorar a memória envolve a série de retrocesso à Origem; experiência que revela sabores aos gostos de quem e ouve o passado, assim como acontece com quem prova e saboreia o vinho.
A narrativa do historiador se baseia no método da hetero-auto-análise, parecendo introduzir os três níveis de realidade da metodologia braudeliana do tempo histórico, estrutura, conjuntura e acontecimento, como método de reconstituição do imaginário do vinho que parte da sua experiência geracional como descendente de vinhocultores. Em suas palavras: “Meu pai é o vinhocultor. Eu sou o vinhedo. Vocês são as sementes”. O historiador se coloca como um narratário que tenta ligar estrutura e acontecimento por meio da relação direta que faz entre o “senhor do vinhedo” e os “frutos do vinhedo”; entre o passado e o presente; a estrutura e a narrativa.
Jean Pierre R. Goubert busca um período de longa duração para sua reconstituição a partir de um acervo de imagens que retratam a relação dos homens com o vinho em uma longa escala da História. Contudo, sua reconstituição dispõe as imagens numa via explicativa de convencimento crescente sobre o papel universal do vinho como objeto de socialização e sobre a presença do ideal de perfeição no seu processo econômico de produção.
As imagens apresentadas pelo historiador orbitam em torno da sua própria interpretação testemunhada – o testemunho de quem é capaz de ver o que está na imagem; de quem pode interpretar os símbolos que ela apresenta, aproximando as funções epistemológicas entre saber e ver; lembrar e provar – o saber provado e degustado na exata medida.
A variável dependente da metodologia de Goubert para descrever o imaginário do vinho é a própria memória coletiva em que ele se inscreve e que se torna um recurso natural para sua narrativa, o meio pelo qual procura “tocar” nos elementos estruturais e antropológicos do imaginário do vinho; um movimento de unir princípio e fim no tempo sem tempo do sonho da unidade perfeita; da congruência perfeita; da saúde perfeita; da sociedade perfeita. Uma narrativa que se movimenta circularmente em torno do que parece unir a natureza semântica do vinho, a função da terra e a compreensão da própria origem, de onde parte o narratário.

As assertivas sobre o papel do vinho como instrumento de socialização e sobre o ideal de perfeição nas escalas históricas de produção são fundamentadas pela dimensão do Sagrado que antecede a transformação do vinho em produto econômico ao mesmo tempo em que é elo de congregação nos calendários das comemorações sociais.
O historiador esboça uma crítica negativa da perda ontológica que o vinho sofre quando seu processo de produção escorrega da dimensão do Sagrado. Por exemplo, questiona a identidade do vinho Miolo pela análise da sua produtividade anual, procurando fazer crer que a identidade da família Miolo com seu passado original foi supostamente preterida pelos índices econômicos de produção. Ao se lançarem ao futuro ao ritmo industrial, a família Miolo estaria comprometendo os fundamentos da tradição com o passado ao perder qualidade e originalidade no alto processo de produção.
A dimensão do Sagrado no método reconstitutivo do historiador indica o lugar de onde ele parte e não aonde chega. Ao reconstituir, Goubert simultaneamente apresenta o Sagrado, que se manifesta praticamente como um juízo sintético a priori e necessário do seu método. Nas palavras de Kant, é o que poderíamos dizer como a metafísica essencial da sua análise. Este juízo sintético se mostra a partir da relação consanguínea com o passado.
As palavras utilizadas pelo historiador para falar das imagens indicam as classes de pensamento a que elas [as palavras] se referem. Assim, a apresentação do historiador “faz-sugerir” uma relação estrutural entre suas palavras e as imagens apresentadas, lembrando Umberto Eco (2005) quando trabalha a relação dinâmica entre a intenção do texto [no caso, das imagens] e a intenção do autor [no caso, a fala do historiador]. Nestes termos, a intenção das imagens [sem considerarmos aqui a fonte e os autores] se encontra com a intenção do historiador. No caso, então, as imagens falam mais do seu próprio imaginário ou do imaginário do vinho?
As imagens [como um texto] não são um segredo a ser desvendado no sentido hermético da função de descobrir, em que apenas um único significado está disponível (Eco, 2005). Mas, apesar de poder significar muitas coisas, o texto [como as imagens] não significa “qualquer coisa”; ou seja, há um conjunto de elementos que estão dados no tempo em que foi produzido e no tempo em que é lido; dois tempos semânticos, então, podem sobrepor-se sem alterar o sentido do texto [das imagens], o que Eco (2005) chama de “milagre do texto e da sua interpretação”.
Entretanto, a relação estrutural que Goubert constrói entre suas palavras e as imagens demonstra um esforço em totalizar a raiz das imagens pela linguagem, o que significa que sua narrativa aponta para uma reconstituição ontológica de tal modo que a dimensão semântica do vinho se mistura com sua ancestralidade sanguínea.
 Fica, então, a questão: qual é o movimento das imagens para o historiador? Trata-se mais de uma imobilidade de conteúdos vestidos por palavras que iluminam, testemunham e trazem as boas novas por serem palavras reveladoras que falam o que vêem? Ou trata-se de uma perspectiva móvel entre outros campos de pensamento que podem ter como referência as mesmas imagens?
Pressupõe-se que a angulação da narrativa para falar do imaginário do vinho indica muito sobre a estrutura em que se apóia a história de vida do próprio historiador, definida por uma ancestralidade genética, moral e social.
O ponto de angulação iluminado por Goubert (2010) foi o modo como o imaginário do vinho foi construído historicamente e como constitui atualmente as relações sociais, inspiradas nos antigos ideais incorporados pelo espírito do vinho, a identidade da gênese, a identidade das gerações, uma vez que ele [o vinho] muda com elas.
O vinho é discernido como uma identidade geracional. Ele se apresenta na dimensão do acontecimento, do fruto, da colheita, da prova, do aroma, do sabor, da sensação – é o futuro da colheita saboreando o passado do cultivo. É o passado provado num exato presente.
 A narrativa de Goubert coloca o vinho na esfera psicológica da existência, concebendo-o a partir de ideais necessários [sagrado, vitória, saúde, sociedade perfeita, fraternidade] e concebidos como constituintes de uma ontologia genealógica e historicamente estruturante. Daí a decorrência de seu método na tarefa explicativa a partir do momento em que passa a constituir conteúdos em função de uma ontologia.
Estas concepções assumem uma função estruturante na narrativa do historiador que parte da colheita do vinho, acontecimento] para constituir o elo identitário entre presente e passado. O saca-rolha aqui não abre apenas o vinho, abre o passado; abre as lembranças que vêm ao sabor da prova. A memória é o nível da conjuntura, a dimensão que mantém as condições para que a ontologia e o Sagrado não se percam no domínio do acontecimento não ritualizado.
A apresentação do historiador foi genealógica, cronológica e sociológica e por meio do qual orientou a relação entre o Sagrado e o ciclo do vinhedo. O Sagrado apresenta-se revestido de significados culturais e estruturais. A produção de significados vem do modo como uma cultura explora o possível e delimita os limites. Como diz Kant, o conjunto total das possibilidades vem do modelo, do Ideal.
Nas palavras do biólogo François Jacob (1992), “a vida humana abre um diálogo contínuo entre aquilo que ‘poderia ser’ e aquilo que ‘é’. Uma mistura sutil de crença, de sabedoria e de imaginação constrói diante dos nossos olhos a imagem constantemente modificada do possível” (Jacob, 1992; p. 9). Jogar o “jogo dos possíveis”, diz Jacob (1992), implica em aproximar o possível à realidade, o limite para fora dos quais o conhecimento funciona como mito. A realidade, então, passa a ser os limites do que se quer observar ou a invenção dos fragmentos de um mundo possível.
A apresentação de Goubert é uma narrativa do possível na tentativa de adequar imagens, palavras e acontecimentos, dando uma textura de realidade unificada e coerente a sua interpretação, mas que só pode ser formada no ponto em que o imaginário do vinho se confunde com o imaginário do próprio historiador, com a invenção do que considerou possível a partir do quadro explicativo que criou.
Neste caso, fica a questão: haveria mais de um possível para as imagens apresentadas? Como o historiador considera o possível? Antes ou a partir do Ideal da Perfeição?
O possível revelado na explanação de Goubert resulta de um encontro consangüíneo entre o imaginário do vinho e sua história geracional; recorrendo à metáfora, o vinho como o espírito que circula em seu sangue, por onde escorre a ancestralidade e a hereditariedade.
O rótulo da origem é apresentado como o engradado estrutural da Identidade; é a constituição ontológica da relação contígua entre o passado e o presente; a estrutura e a narrativa; a testemunha e o acontecimento; o pensamento e a linguagem; o espírito e a memória; a origem e o Sagrado; o sangue e o vinho.
Quem prova o acontecimento torna-se consangüíneo com ele. A testemunha prova o real. Saboreia, degusta-o ao lembrar o que viu ou descrever o que vê. A testemunha é a memória do acontecimento. Oferece o passado à prova. Goubert pretendeu ser uma memória, aquela que lembra e reconstitui.
Mas, além de contar sobre a estrutura sacra do vinho, Goubert também nos convidou a prová-la, queria corporificar a experiência ao sabor que despertaria em nossa memória por uma ritualização que pretendia unificar as funções de ver e ouvir sobre o vinho. Faltava, desta forma, prová-lo.
Goubert trouxe um vinho do seu vinhedo na França e quis tomá-lo ao final do ciclo dos seminários, propondo uma espécie de degustação ritualizada a fim de transpor para o momento de forma mais ou menos exata o que foi explanado. Pode-se entender que a prova do vinho corporificaria em nossa memória um evento congregado por um ritual de celebração, uma espécie de sacralização do encontro. Em outras palavras, significaria literalmente a prova do ciclo de um vinhedo.

Mas, não tínhamos um saca-rolha !


III - Referências Bibliográficas
BLOCH, Marc Leopold Benjamim (2001). Apologia da História ou, O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
BRAUDEL, Fernand. "A Longa Duração" (1972). História e Ciências Sociais. Lisboa: Editorial Presença (Originalmente publicado em 1958).
ECO, Umberto (2005). Interpretação e História. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes.
GOUBERT. Jean Pierre Raymond (2010). "O sonho do Divino: Vitória sobre a morte e presença da vida"; "O sonho de uma saúde perfeita: de Hipócrates ao paradoxo francês"; "O sonho de uma sociedade perfeita: vinho e fraternidade". Seminários no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Coordas. Elaine P. Rabinovich & Eda T. de O. Tassara. Departamento de Psicologia Social/LAPSI.
HARTOG, François (2003). Régimes d’historicité: Présentisme et expériences du temp. Paris: Editions du Seuil.
HARTOG, François (2003). O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges [1998]. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
HOBSBAWN, Eric (1998). "A História Britânica e os Annales: Um Comentário". Sobre História. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras.
JACOB, François (1992). O Jogo dos Possíveis: ensaio sobre a diversidade do mundo vivo. Lisboa: Gradiva – Publicações. L.
KANT, Immanuel (1991). A crítica da razão pura. Vol. II. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural (Originalmente publicado em 1787).
NOVAIS, Fernando (2008). Entrevista. Revista Brasileira de Psicanálise, 42, 2.
NOVAIS, Fernando (2010). "Historiografia da Nova História". Conferência. Encontro dos Programas de Pós Graduação. Universidade Federal da Bahia. Salvador.

Relato de uma viagem a Índia (2005)


 Ainda no avião, quando ele mal tinha saído de Londres, eu já pressentia as dificuldades que iria enfrentar na Índia. Também, o que esperar da idéia de chegar sozinho numa atmosfera cultural como a da Índia capaz de eletrificar qualquer idéia pré-estabelecida do mundo. Senti medo. Tentava me distrair no avião, racionalizando meus temores, lançando uma dose extra de positividade à iniciativa quase que maluca de ir para a Índia apenas com um guia que havia comprado em Londres, apesar de estar estudando a cultura indiana e as precauções necessárias para uma viagem segura a Índia há mais de cinco anos e também de já ter me comunicado com pessoas de lá e ter pego informações a respeito. Todas as minhas expectativas estavam depositadas numa única alternativa, assim que chegasse na Índia, procuraria diretamente o centro Yogoda Satsanga Society, fundado por Paramahansa Yogananda. Trata-se de um instituto que ministra ensinamentos sobre técnicas de meditação e filosofia de vida, conhecido no ocidente como Self-Realization Fellowship. Como eu sou estudante dessa organização, pensei que lá eu conseguiria todas as informações necessárias sobre um bom hotel, e também não tão caro, até me organizar para ir para Dwarahat, no Himalaia, onde ficaria num ashram (monastério). Já havia me correspondido por e-mail com os monges de lá, e esse era o conforto que encontrava para amenizar a insegurança e o nervosismo sobre a chegada na Índia, uma vez que a experiência que tinha [na época] como estrangeiro (em Londres) mostrava que os primeiros dias em qualquer lugar novo e sozinho são os mais difíceis, e o dilema do momento era: imagina na Índia?

* * *

Cheguei na Índia às 6:30 da manhã. Lógico que desci do avião, dei meu primeiro passo com o pé direito, ao mesmo tempo em que fazia uma silenciosa prece para que tudo desse certo. Eu havia chegado, estava na Índia! Parecia um sonho. Depois de pegar a mala, troquei os primeiros cem dólares por rupia e fui ao guichê para pedir informações sobre táxi. Enquanto tentava negociar o preço, também insisti se o motorista realmente sabia chegar no meu lugar de destino. Como já ouvira falar que é comum os taxistas dizerem que conhecem o caminho apenas para não perderem o cliente, procurei ser incisivo nesta questão, tentando garantir a maior segurança possível. Após o táxi ter iniciado a corrida, não demorou muito para perceber a loucura que é o trânsito da Índia. Apesar de já ter lido a respeito, nada como ver ao vivo e a cores. A sensação de estar em uma corrida de automóveis é somada ao fato de que as duas mãos contrárias andam praticamente coladas, então, os caminhos são traçados em zigue-zague, enquanto a sinfonia das buzinas dá o som final.

* * *

Ao chegar na Yogoda Satsanga Society, e ver o nome escrito nas paredes externas do templo, meu coração logo se aliviou, e eu tinha a certeza que dali em diante tudo daria certo, eu estava em casa. Saí do carro e fui em direção à guarita do segurança, onde vi a foto do mestre Yogonanda, foi uma ótima sensação, internamente reverenciei e agradeci por tudo ter corrido bem. Depois de ter esperado algum tempo, algo próximo dos trinta minutos, consegui falar com a pessoa responsável. Conversamos um pouco e peguei algumas informações sobre hotéis. Ele chamou um táxi, e então eu me dirigi para o centro de New Delhi, Connaught Place. Aí começou minha derradeira experiência. O choque cultural ganha magnitude em Connaught Place, as sensações se estendem em pensamento, que se revertem em imagens e se flagram nos cheiros. Ainda no táxi, eu observava aquela multidão, o colorido, o barulho e tudo isso eletrificou meus sentidos. Mas, eu viria a descobrir que o centro de Delhi não é um bom local para se hospedar. Quem não gosta de multidão e não está disposto a exercitar um sacrifício em função de uma simplicidade total, considerando conforto e higiene, não deve se hospedar em Connaught place.

* * *

Como sabemos, existem muitas Índias e eu caí na pior delas. Fui atrás da Índia dos ensinamentos, mas não a encontrei, ela estava escondida para mim. Como ainda estava tudo no começo, eu não tinha a percepção exata da onde estava. A coisa só se agravou quando cheguei no hotel. Como quem tinha me indicado o hotel era a pessoa responsável pelo templo da Yogoda, e como eu estava muito cansado, com calor, não conferi o quarto antes, e paguei uns seis dólares para ficar lá. Então, peguei um elevador, escuro, com grade. O corredor do quarto era estreito, feio, com vários quartos próximos uns dos outros. Ao entrar no meu quarto, minha nossa!!! Marcas de sangue na parede, sinais da presença de mosquito! Um ventilador barulhento, uma janela estranha, com vista para as costas de um prédio. As roupas coloridas estendidas no prédio da frente eram a vista da janela do quarto. O chuveiro, quando liguei, esparramou água em todas as direções, menos na minha cabeça. Também não tinha a chave do quarto, esperei uns vinte minutos até o rapaz achar a chave, e eu só observando tudo aquilo e pensando, "onde estou?" Quando ele achou a chave, eu me troquei para voltar ao centro da Yogoda e solicitar outra dica de hotel, mas, neste momento, a chave não saia da fechadura, outro problema. Como mal havia chegado, eu não tinha perspectiva para analisar muito bem o que estava acontecendo, pensava que eram infortúnios comuns de uma viagem incomum.

* * *

Assim que cheguei na Yogoda, disse que não poderia continuar naquele hotel, e pedi outra opção. A pessoa me falou que tudo dependia de quanto eu podia pagar, então me deu outra dica, agora era um hotel em torno de U$100 a diária. Logo pensei que ficaria neste hotel por uma noite e anteciparia a minha reserva em Dwarahat, o ashram onde ficaria na Índia, mas minha reserva era para 23 de junho, e eu estava um mês adiantado. Ao ligar, vimos que estava lotado até o final de junho, então, como eu já sabia que lá existe um apartamento que é alugado para os estudantes, pedi para ver se havia possibilidade de ficar nele até a data da minha reserva. Contudo, isso só poderia ser visto no dia seguinte. Então, fui ao hotel de U$100. Meus planos eram ir para este hotel, tomar um banho, descansar e depois voltar para o centro e participar da meditação. Na manhã seguinte, quando teria a resposta do apartamento em Dwarahat, então, eu compraria o passe de trem e iria para lá, só que infelizmente o meu caminho foi interrompido e as coisas não aconteceram como eu imaginara.

* * *

No caminho do hotel, aquele de U$100, um rapaz começou a conversar comigo na rua, dizendo que era estudante, que não queria nada de mim, mostrou a foto do mestre dele na carteira e disse que queria ajudar por que na religião dele ajudar as pessoas é a meta das coisas, se ele ajuda, é ajudado... e disse sentir que eu precisava de ajuda; disse que eu parecia turista, que chamava a atenção e que devia me vestir como indiano. Disse que Connaught Place não era lugar para turistas, que era perigoso, e me perguntou por que eu não ia ao centro de turismo, que era ali perto, e onde eu pegaria várias informações que seriam de grande ajuda. Eu disse que estava indo ao hotel Connaught, e ele disse para não ir lá, que era caro, e que eu pegaria boas informações nesse centro. Então fui, e ele me acompanhou ao Center Tour & Travels, uma agência de viagens. Falei com Nazir Ahmed Karnai, para quem expus minha situação e ele me propôs um pacote de U$260 que incluía passagem de avião, cinco dias e quatro noites num hotel barco com todas as refeições nas montanhas do Himalaia, em Sri Nagar – região de Kashmir. Segundo Nazir, um local de paz, de silêncio, onde vão muitos turistas. Eu perguntei se não era uma região de conflitos entre hindus e mulçumanos, ele falou que isso era coisa do passado e que não existia mais este tipo de problema há três anos. Mostrou uma revista brasileira, na qual Artur Verissimo já tinha escrito sobre ele e os serviços desta agencia. Então, disse que o motorista iria comigo até o hotel em que estava hospedado, eu pegaria as minhas coisas e passaria uma noite numa casa de família indiana, onde eu veria os hábitos; disse que seria uma oportunidade para conhecer a cultura deles, etc. Eu, na situação em que estava, achei que era uma boa saída, afinal de contas, eu poderia sair de Delhi e depois seguir para Dharamsala, Rishi Kesh e Dwarahat, mesmo porque Sri Nagar não é longe desses lugares. Tudo parecia muito coerente. Então, entrei no carro com um motorista e o rapaz me levou até o hotel para eu pegar as minhas coisas. Estranhamente, a pessoa que estava me acompanhando não queria que o motorista parasse o carro na frente do hotel, e parou uns cem metros antes, dizendo que estaria me esperando lá. Chegando no hotel, recolhi minhas coisas rapidamente, voltando em seguida para a agência, onde o garoto, o qual havia me encontrado na rua e me levado naquela agência, ainda estava me esperando. Ele disse que gostaria de me levar ao templo dele para orar por mim. Eu agradeci, e disse que estava muito cansado, que precisava de um banho e descansar um pouco, e que ele me desse o telefone dele que depois eu ligaria. Agradeci pela ajuda e entrei no carro, dirigindo-me para a casa de família. Lá, tomei um banho, descansei num quarto privado, ventilado, com uma grande cama de casal. Comparei o antes e o depois, e pensei como as coisas tinham melhorado, no dia seguinte iria para o Himalaia, depois para o ashram, tinha encontrado pessoas que estavam me ajudando, enfim, estava mais confiante, apesar de um pouco angustiado, e não sabia o por quê.

* * *

Depois de ter descansado, o motorista me levou para conhecer alguns lugares em Nova Delhi, como o templo de lótus, um parque histórico, a feira principal, o parlamento e o palácio presidencial, fiquei umas cinco horas andando de carro e conhecendo Nova Delhi e seus contrastes sociais. Depois disso, presenciei a família indiana comendo com a mão a habilidade para amassar o arroz, a batata, a carne, o yogurte, tudo numa coisa só, e com a mão direita, levando tudo isso a boca. Ainda bem que pude ter os meus talheres, não conseguiria fazer aquilo, pelo menos não no meu primeiro dia na Índia. No dia seguinte, embarco nove horas da manhã para Sri Nagar, Kashimir, norte da Índia. Ao olhar no mapa a região de Kashimir, logo aparece Islamabad e Kabul. Ao chegar em em Sri Nagar, tinha uma pessoa me esperando com um papel escrito meu nome. Entrei no carro e fomos para boathotel (hotel barco). Quando cheguei neste boathotel, minha primeira sensação foi de espanto e surpresa com a decoração exótica e conforto do lugar. Mal tinham se passado uma hora em que eu estava lá, e o Bassir, a pessoa que tinha me recebido no aeroporto, suposto dono do barco, disse: "vamos falar sobre negócios, agora é business, depois amizade". E eu não entendi muito bem o que aquilo significava, então ele começou a oferecer dez dias no barco, com refeições, trekking nas montanhas, uma passagem de avião até uma cidade próxima à Rishi Kesh, uma passagem de trem até Rishi Kesh onde ficaria num ashram de yoga, e mais uma passagem de trem para Dwarahat, tudo por U$1700. Na hora eu congelei, disse que não, que era muito dinheiro, que mal eu havia chegado e que ainda não sabia direito o que faria. Então, ele foi mostrando fotos, falando, persuadindo, eu também já havia lido que trekking no Himalaia é caro, tem que pagar autorização, taxa do passeio, guia e as roupas especiais. E ele continuou falando, então baixou o trekking e as outras coisas para U$900. Na verdade, tudo isso é um golpe. Ele lança um valor alto, depois baixa bruscamente para pensarmos que é uma ótima oportunidade, um preço especial feito especialmente para nós. Ele não desistia e se exaltava quando percebia minha resistência. Então, eu disse que iria pensar, que eu precisava de um tempo, mas ele não deu, continuou falando, dizendo que eu tinha que fechar naquela hora, que ele tinha que montar o itinerário, pagar as pessoas, os equipamentos, a autorização para o trekking, comprar as passagens, enfim, fazendo de tudo para me convencer que eu devia pagar naquele momento, e depois não mais negócios, apenas diversão. Dizia que recebia centenas de turistas sempre, por quanto costumava cobrar o aluguel daquele barco e o quanto estava fazendo para mim. Fui enviado para este lugar por um preço razoável, U$260, que incluía passagem de avião, quatro noites e cinco dias num hotel barco com todas as refeições. Este preço não está ruim, mas isso é um jogo. Eles vendem um pacote por um preço razoável inicialmente para depois coagir a gastar mais. É uma rede interconectada. Eles trabalham em equipe. Aquele garoto que me parou no caminho do hotel de U$100 também faz parte desta quadrilha. Provavelmente ele recebeu uma comissão por ter me levado naquela agência. Da agência fui para Sri Nagar, e lá eles fecharam o cerco.

* * *

Paguei U$1490 por um pacote que incluía várias coisas, menos o valor do dinheiro pago. À caminho do barco, pensei: "O que foi que eu fiz?!!! Não acredito que cai nessa." Dali para frente esta angústia não me deixou mais em paz. Tentei falar novamente com o Bassir, dizendo que não estava confortável com o dinheiro que havia pago. Ingenuamente, estava tentando dividir o meu arrependimento com ele, achando que ele pudesse me aliviar de alguma forma – ilusão. Lógico que ele me aliviou, mas dentro da perspectiva dele, falando que eu tinha pago um bom preço, que eu me divertiria muito e etc. Mas isso não me satisfez, e eu continuei angustiado. Durante a noite, a angústia baixou um pouco, e eu consegui relaxar e até escrever, ouvindo música, tendo uma janela de frente para o rio. Aparentemente tudo estava muito bem, com todo o conforto merecido. Quando acordei no dia seguinte, num átimo de segundo abri os olhos, a angústia tinha voltado. Tomei o café da manhã, ovos, pão, chá, manteiga. Depois do café, ao querer sair , como ir na internet, descobri que não poderia andar sozinho, e mesmo estar sozinho. Estava sempre sendo acompanhado. Também não via turistas em nenhuma parte, e apenas eu me diferenciava das pessoas com minhas roupas predominantemente ocidentais. Após retornar da internet, fiz um passeio de quatro horas de barco. Tirei fotos, tentei relaxar, aproveitar, porque o local é bonito, exótico, diferente, eu me esforçava para gostar e não entendia porque ainda me sentia desconectado de mim mesmo. Descemos em uma mesquita mulçumana, um parque..., ficamos uns quarenta minutos neste local, onde tinha um centro comercial rico em especiarias e com vilas muito pobres. Também não via nenhum turista. Não sei por que, mas eu os procurava, queria confirmar que não estava sozinho. No retorno do passeio começou a chover, e eu continuava a me esforçar para mandar aquela angústia embora. Estava em meio às montanhas do Himalaia, andando de barco... mas, quando cheguei de novo no boathotel, entendi por que estava sentindo aquela angústia e desde então o meu esforço era: ir embora o mais rápido possível.

* * *

Ao chegar no barco em que estava alojado, vi um turista (o único que eu veria por lá), origem japonesa, mas que não falava inglês. Todavia, ele já estava lá há mais de dez dias, e no mesmo barco que o meu, eu que ainda não o tinha visto. Nosso barco tinha duas suítes e uma sala compartilhada, cada um estava num quarto. Apesar do péssimo inglês, eu consegui entendê-lo, percebendo que o que me angustiava era o mesmo que o incomodava. Ele havia pago U$ 2000, incluindo uma passagem para Bangcok, Tailândia. Ele dizia que enquanto fazia o trekking nas montanhas, apesar do lugar ser lindo, a mente dele estava perturbada, gritando: "money, money, money". Ali tive a certeza de que todos são explorados. E que eu também tinha sido. A certeza de ter sido intencionalmente lesado é muito angustiante para um viajante. Então, fui procurar o Bassir para falar que eu precisava ir embora, mas ele não estava lá. Quem estava era uma outra pessoa, com uma aparência tipicamente mulçumana, com bigode ralo e roupas tradicionais. Eu disse que tinha um problema e que precisava resolver rapidamente, que precisava ir embora. Perguntei que horas o Bassir chegaria, ele disse que logo, então começou a ligar, mas só dava ocupado. Ele percebeu que eu estava inquieto, preocupado. Foi quando disse que também era um dos chefes, e que eu poderia falar com ele o que estava acontecendo. Então, disse que naquela manhã eu tinha recebido um e-mail da minha irmã, dizendo que nossa mãe não estava bem, e que eu tinha que voltar o mais rápido possível, por isso, como eu tinha pago para fazer o trekking, outros passeios, dez dias para ficar lá, incluindo passagens de avião e de trem, e eu não poderia mais aproveitar nada disso, que eu gostaria de ter o dinheiro de volta. E ele disse: "o que é mais importante, sua mãe ou o dinheiro?" Pronto, tive a certeza de que não receberia o dinheiro. Ele disse: "no problem", e voltou a conversar com o japonês. Eu o interrompi e disse: "Desculpa, mas eu tenho um problema ..." . Não demorou muito quando o Bassir chegou, e eu fui falar com ele, mas ele disse que eu era mentiroso, e que ele não gostava de mentiroso. Aí senti medo ao vê-lo nervoso. Percebi que não sabia com quem eu estava lidando. Perguntei quanto ele poderia me devolver, ele disse U$225, eu pedi U$700, metade do que eu tinha gasto, ele chegou nos U$ 400, mas disse que só faria isso por causa da minha mãe, e que se fosse outro caso não me daria nada. Na Índia, a mãe é sagrada e está acima de tudo. Em seguida, pediu para ver o e-mail que eu recebi da minha irmã, dizendo que a nossa mãe não estava bem. Eu gelei nesta hora. "E agora?", pensei. Eu não tinha este e-mail. "E se ele descobrisse que era mentira, o que poderia acontecer?". Enquanto ele tentava achar um vôo para eu ir embora, ele já havia gritado que estavam todos cheios no dia seguinte, e que eu só teria um vôo disponível dois dias depois, eu disse que precisava ligar para o Brasil. Novamente, um rapaz me acompanhou até a Internet, onde também tem telefone. Chegando lá, enquanto o rapaz ligava a Internet, eu disse que também precisava usá-la, eu esboçava falsas iniciativas de ligar, dizendo que o telefone estava ocupado para dar tempo que o rapaz ligasse à internet. No meio desses telefonemas, parou em frente à lan house um carro com aquele rapaz de bigode e aparência mulçumana que havia conversado horas atrás. Pensei: "estou sendo seguido? Ele veio atrás para ver o que eu faria". Ele me encarou de forma estranha, nada amigável. As coisas não estavam boas. Assim que ele foi embora, a Internet já estava ligada, então, entrei no e-mail de um provedor e mandei para o e-mail que tinha com outro provedor a mensagem que disse ao Bassir que havia recebido. Assim, pensava, "teria alguma prova caso ele quisesse uma". Mas, a minha apreensão era a data do e-mail. Eu havia falado que tinha recebido de manhã, mas eu enviei o e-mail para mim mesmo no final da tarde. Depois, pensei que poderia argumentar a favor do fuso horário, e que a página marca a hora do Brasil, na qual há uma diferença, etc. Contudo, eu apenas torcia para que nada disso fosse necessário e eu conseguisse ir embora o mais rápido possível.

* * *

Quando voltei ao meu barco, o Bassir mandou um de seus serventes me chamar. Fui até seu barco, ele convidou-me a sentar, mas ele queria me manter em seu barco, persuadindo-me a ficar. Disse que tinha conseguido um vôo para o dia seguinte, "sensação indescritível de liberdade!", foi a que eu tive na hora. Eu teria que dar cinqüenta dólares para o responsável da agência de viagens por que se tratava de uma situação especial, todos os vôos estavam lotados. Eu disse que tudo bem, e ele começou a organizar o vôo de Delhi para Londres. Foi ai que ele propôs uma passagem só para Delhi, sem precisar ir para Londres naquela condição, uma vez que eu já tinha uma passagem para Londres pela Golf Air, que havia comprado em Londres, mas só tinha vôo disponível a partir de 20 de junho. Disse também que eu poderia ficar mais uns dois dias lá, que ele poderia ver se conseguia achar uma vaga para mim pela Golf Air para antes de junho. Mas eu senti que ele estava me testando, porque se eu aceitasse isso é porque a história da minha mãe não era verdadeira. Eu tive que sustentar essa história e para isso aceitei os vôos que ele tinha encontrado O vôo para Delhi, segundo ele, custava em torno de U$225 e o vôo para Londres, pela British Airways, sem escala, custava uns U$825. Então, eu teria que dar para ele mais U$ 600, que ele daria os U$ 450 que faltavam. Depois vi que o vôo de Sri Nagar para Delhi é próximo dos U$100, e que ele havia dado o preço errado. Após ter pago, ficamos de nos ver no dia seguinte, quando ele me levaria ao aeroporto e me daria as passagens, e eu finalmente iria embora. Então, fui para o meu barco, onde o colega japonês estava. Conversamos um pouco, ele disse para não deixar minhas coisas sem cadeado, ainda que com um inglês bem ralo, mas eu pude entender o que ele estava dizendo. Ele andava com o dinheiro naquelas polchetes internas de viagem que se amarra na cintura. Percebi, então, que eu tinha saído, feito o passei de barco, e tinha deixado minhas coisas no quarto, sem tranca, sem nada. Aliás, o quarto no barco em que estava na tinha chaves. Fui até o quarto, dei uma checada em todas as minhas coisas, e nada havia sumido, nem meu computador, o que eu mai temia. Eu estava, então, em meu quarto, no computador, quando dois sujeitos entraram de repente. Não por acaso, aquele de bigode ralo e um outro. Eles entraram olhando para as coisas, como que procurando algo. Eu pedi que saíssem, que estava cansado, precisava tomar um banho e dormir. Eles só saíram do quarto depois que tiveram a certeza que eu realmente iria tomar banho. Tudo isso estava me deixando muito tenso, inseguro. Eu não estava entendo aquela espécie de coerção, ao menos era assim que me sentia, e também não queria desafiar nem ofender, o que não seria nada bom. Após o banho, o jantar; após o jantar, uma noite sem dormir.

* * *

Passei uma noite inteira sem piscar o olho. Como meu quarto não tinha chaves, fixei na possibilidade de alguém, para me prejudicar, por alguma coisa na minha mala, como droga. Eu nunca mais sairia daquele local. Revistei minha mala várias vezes, me transportei para os filmes, na qual uma simples viagem, tão inocente e com bons propósitos, se transformam em tragédias. Não tenho como descrever aquela noite, eu acredito que só em dizer que não preguei o olho já deve bastar para dar uma idéia do meu estado. Verifiquei a minha mala de novo durante a madrugada, amarrei com cadeado o meu computador. Aguardando as horas passarem, vi o dia irradiar e oito horas levantei. Foi oferecido café, mas meu estômago estava embrulhado, e eu não conseguia comer nada, tomei apenas um chá. Sentei na varanda do barco, que dava de frente para o estacionamento, e ansiosamente esperei o homem chegar com a passagem para minha liberdade. Eu tinha um corredor de obstáculos na minha frente, tentava arquitetar formas de continuar na Índia, eu não estava acreditando que iria embora, que tudo aquilo estava acontecendo. Mas, minha primeira prioridade era sair de lá, depois eu pensaria no que fazer. Enquanto esperava, o colega japonês acordou. Conversamos um pouco e percebi que ele estava como eu, aflito. Atrás do cartão da agência Centre Tour & Travels tem instruções em japonês, dizendo: "Deixa que sua viagem para Índia, nós organizamos". Ele provavelmente foi "pego" em Delhi e levado para lá, assim como eu. Ele dizia: "In Japan, no money, my house". Eu gostei dele, espero que ele tenha ficado bem.

* * *

Por volta das 10:30 da manhã, Bassir chegou. Saímos por volta das 11:30 da manhã. Enquanto andávamos, eu ficava ligado nas placas que indicavam o caminho do aeroporto, a idéia de que ele me levasse para algum outro lugar ainda estava na minha cabeça. De repente, ele parou o carro e pediu o meu passaporte Ele foi na agência pegar a passagem, quando vi uma pessoa sair com o meu passaporte na mão e tirar uma xerox na loja ao lado. Quando Bassir voltou, começou a acontecer um tumulto na rua, um protesto, com faixas e policia atrás. E logo que a manifestação passou por nós, eles fecharam as portas da agência. Logo que a passeata avançou, eles abriram de novo as portas. Era um dia de greve, e eu tinha dado sorte em ter conseguido aquela passagem. Quando chegamos ao aeroporto, fui revistado cinco vezes por soldados vestindo amarelo, turbante, barba e metralhadora na mão. Depois que já tinha passado por tudo e estava esperando o vôo, um policial começou a conversar comigo, dizendo: "psicólogo brasileiro!". Estranho, como ele sabia disso? Nesses lugares, eles visualizam quem somos, nós achamos que não estamos sendo notados, mas todos nos percebem. ‘ Quando entrei no avião baixou uma sensação de profundo alivio, e também de decepção, o prejuízo financeiro se misturava com o emocional, eu estava desapontado, não entendendo por que tudo teve que ser assim. Estava decepcionado. Foi terrível ter deixado U$2400 em Sri Nagar, mas foi mais difícil ter deixado a Índia por Sri Nagar.

* * *

Dizem que a Índia nos transforma, e quanto! Mas, um dia eu voltarei, e acharei a Índia que amo e que admiro. Refarei o trajeto que estava destinado a fazer no exato e infeliz encontro com aquele garoto. Ainda penso no que teria acontecido se ele não estivesse no meu caminho. Minha passagem de volta a Londres era para novembro, estávamos no meio de maio. Uma viagem que deveria durar seis meses aconteceu em cinco dias. De fato, a drasticidade da inversão do tempo de viagem já é um grande impacto. De um tempo médio, que é o que deveria ser, para um tempo curto, o que foi, de qualquer maneira, a experiência na Índia me modificou, de um modo inimaginável.