Uma Análise Psicosocial do Método Histórico: Sangue e Vinho
Resumo
Este artigo é uma análise crítica do método da hetero-auto-análise por meio do qual o historiador francês Jean Pierre Raymond Goubert tratou do conceito de Identidade. A partir da relação que estabelece entre o ciclo do vinhedo e seu ciclo genealógico, este trabalho analisa o método de reconstituição do historiador acerca do imaginário do vinho, destacando o operador psicológico do seu modelo explicativo que se constitui na dimensão do Sagrado. O vinho é tratado no tempo estrutural da esfera psicológica como Elo necessário entre a sociedade e o Ideal da Razão; o elemento regulativo e constitutivo entre o presente e o passado. O vinho representa a dimensão do acontecimento histórico; o sangue ennvolve a relação estrutural com o passado. Este artigo é uma análise crítica e epistêmica do método histórico por meio do qual procura-se refletir a relação entre identidade, narrativa e estrutura.
Palavras-Chave: identidade, sangue, vinho, passado, presente.
Abstract
This paper is a critical analysis of the hetero-self-analysis method by which the French historian Jean Pierre Raymond Goubert treated of identity concept. From the relation established by his own between the vineyard cycle and his genealogy, the aim is to analysis the reconstitution’s method of historian about the wine’s imaginary pointing out the psychological operator of his explanatory model whose constitution lies on Holy dimension. The wine is treated in the structural level of psychological sphere as the necessary link between the society and the Ideal of the Reason; the regulative and the constitutive element between the present and the past. The wine represents the dimension of the historical happening; the blood involves the structural relation with the past. This paper is a critical and epistemic analysis of the historical method by which it reflects the relation between the identity, the narrative and the structure.
Key-Words: identity, blood, wine, past, present.
I – Introdução
O leitor não estranhe ao perceber que o autor deste artigo está iniciando-o na primeira pessoa, embora não vá permanecer nela por muito tempo. Este artigo é a reflexão crítica de uma história oral que conta sobre uma relação poética entre o imaginário do vinho, o ciclo do vinhedo e o ciclo genealógico da humanidade, com forte destaque para o conceito de Identidade, tão caro à Psicologia Social.
O que comentarei chegou a mim por imagens narradas, mas aos caros leitores chegarão as minhas palavras, minhas elaborações e minhas reflexões críticas do que pretendo analisar. Na verdade, vou discutir o método por meio do qual a história sobre o imaginário do vinho foi contada. Quando começar esta análise, o sujeito da primeira pessoa terá que sair do texto.
Para o autor deste artigo, esta história chegou como uma síntese, como uma narrativa da origem. Chegou como uma história contada na primeira pessoa. Ao leitor, espera-se que a mesma história chegue como análise, pois há a minha interferência na interpretação do que pretendo apresentar e comentar. Mas, a análise também carrega o seu duplo original, a síntese. O tempo da análise parte de uma síntese primordial [o endereço da partida] e sem a qual a própria análise não teria qualquer substrato elementar.
Não por acaso, então, este texto começa sendo escrito na primeira pessoa. O intuito é demonstrar que ele parte de uma síntese. Por isso, com minucioso cuidado, é possível perceber que o título deste artigo pressupõe uma epistemologia encapsulada, isto é, a compreensão do que pretendo comentar também é a elaboração de uma experiência de vida, uma memória que se constituiu de tal forma que é difícil dizer o ponto em que ela deixa de ser sintética para ser analítica; o ponto em que me separo analiticamente da experiência de modo que ela se distancie enquanto objeto, promovendo uma separação moral entre eu e os conteúdos da minha memória pessoal. O ponto em que esta memória se torne tão impessoal de modo que o juízo não seja comprometido por nenhuma relação de consanguinidade com o passado. Afinal, não por acaso, ao menos juridicamente, laços consanguíneos não podem ser testemunhais. O sangue compromete.
O sangue corresponde à relação estrutural com o passado, com a origem, com a identidade, o que se revela no sentido genealógico do termo. Mas, há também um domínio semântico para a palavra “sangue” que se manifesta na adoção arbitrária, porém necessária de um significado estrutural entre presente e passado. A palavra sangue assume aqui uma função mais epistemológica do que fisiológica. Ela sugere a unidade estrutural que se aplica à relação entre passado e presente; a identidade que se constitui entre a narrativa e a estrutura.
A questão é que apesar do sangue estabelecer o tipo de relação mais estrutural possível com o passado, ele não se inscreve apenas numa fonte genealógica de registros históricos, de fatos históricos e de verdades históricas que antecedem estruturalmente e, portanto, consanguineamente, uma dada história de vida. Relações consanguíneas com o passado não implicam na determinação de um passado sintético, acabado, morto, enterrado.
A perspectiva estrutural não precisa preterir politicamente o presente ou o poder histórico do contemporâneo para afirmar a força tradicional do passado analítico, como sugere Marc Bloch (2001) quando critica a psicologia dos testemunhos pelo fato de que os componentes da narrativa são muito imediatos.
O operador da realidade é destacadamente psicológico. O que significa que relatos históricos estão embebidos de estados psicológicos e o passado pode, deste modo, se abrir a novos testes, novas provas, conforme o passar das gerações. O passado, então, pode ser ressuscitado. Contudo, o tempo da ressurreição é o do presente.
As relações estruturais com o passado são significadas pelo presente e pressupõem um Valor, o significado, que assume a Função de Referência Temporal em determinada equação histórica. Relações estruturais envolvem implicações semânticas, o que significa que o Valor passa a representar o Ideal, o que “deveria ser” frente ao que “não foi” ou que “infelizmente foi”.
O tempo tem outros gêneros narrativos que não são unicamente o da História. Neste sentido, o Passado não se mostra apenas à luz do que “foi”, mas do que “deveria ser”; a história guarda o tempo que se coloca como o futuro perfeito a espera de ser realizado. O tempo que não se realizou no passado imperfeito e que continua presente no seio do coração humano, inspirando as revoluções e renovações sociais. O perfeito assume a função de espelho do real, a forma que determina a reflexão da imagem e atua como referência semântica e estruturante nas narrativas da Origem.
O método de reencontro com o passado se constitui no tempo da análise. O tempo de vivência do presente se constitui no tempo da síntese. No séc. XIX, um termo foi bastante empregado para se fazer análises históricas, comentário. Esta nomenclatura aparece a partir de uma crucial necessidade dos analistas, separar o narrador do acontecimento; o presente do passado; a síntese da análise; o autor do texto.
A cultura do comentário estabeleceu o lugar do historiador e o texto assumiu uma sacralidade como fonte e como origem. O comentário como método da análise histórica separou a noção da síntese entre o a priori e o a posteriori. Uma coisa é chegar aos elementos a partir de uma análise crítica; outra é partir de certos elementos concebendo-os como necessários e independentes da experiência.
No entanto, o mais claro exercício da análise do comentário ainda chega aos ouvintes como síntese, uma vez que o historiador acaba produzindo efeitos de verdades carismáticas por representar os olhos mediáticos de um presente contemporâneo; os olhos da principal testemunha com o passado – Histor – a testemunha que viu – ópsis. O historiador faz crer o que o olho escreve (Hartog, 1980). Na análise histórica, a visão é sempre uma constante epistemológica que regula o testemunho. A autópsia do historiador busca a relação estrutural entre o ver e o dizer.
No entanto, quando o relato histórico passa a explicar o passado, ele assume uma determinada necessidade, tornando-se muito difícil discernir o fato histórico da percepção psicológica da realidade; a memória do julgamento; a lembrança do falseamento ou reconstrução do real.
Como ressalta Hobsbawn (1998), explicar o avante da narrativa histórica necessita reconstituir seus determinantes causais pelo uso das idéias para explicar a História. Neste sentido, poder-se-ia dizer que, por um instante, o historiador e o psicólogo se colocam juntos no âmago da alma humana, onde começa o princípio inteligível da História (Hartog, 1998).
A História deriva da necessidade de construção da memória social e o discurso do historiador tem que chegar à dimensão do acontecimento, o que implica na narrativa do fato do que realmente aconteceu. Neste sentido, o acontecimento histórico é de onde o historiador parte e não aonde chega. Parte da etnografia retrospectiva por meio de uma descrição densa e, ao mesmo tempo, minuciosa, entre tempo e espaço; narrativa e acontecimento.
No entanto, a dimensão do acontecimento, da conjuntura e da estrutura são os níveis de realidades constituintes de quatro esferas, conforme descreveu Weber, esfera econômica, esfera social, esfera cultural e a esfera psicológica. No entanto, o historiador Fernando Novais (2010) propõe uma renovação da interpretação braudeliana e marxista da História, introduzindo esses níveis de realidades em todas as esferas da existência, separando, assim, as esferas da existência da estrutura econômica; diferenciando, da mesma forma, interpretação econômica da história do materialismo dialético a partir de um logos supostamente existente entre as esferas da existência e os níveis de realidade.
A formação das ciências sociais é um percurso do fim do século XVIII para o XIX, e, como diz Novais (2008), a partir daí a História passa a ser moderna. Antes da modernidade, as ciências sociais não existiam. “Porque as ciências sociais nascem dentro da História a partir do momento em que se tem a sensação ou a necessidade de explicar certas esferas da existência” (Novais, 2008; p. 5). As ciências sociais nascem com a intenção de precisar seu objeto de estudo num modelo que aborda uma única esfera da existência por entender a impossibilidade de se abarcar todas as esferas.
O discurso sobre a esfera social da existência surgiu ao longo do séc. XVIII, enquanto que o discurso sobre a esfera econômica da existência surgiu no séc. XIX; e o materialismo histórico surge no séc. XX. A diferença entre História e Ciências Sociais se apresenta na preocupação da última em tratar de uma esfera da existência de forma delimitada, buscando formular conceitos.
Como diz Novais (2008;2010), o historiador (em-si) não tem o objetivo de precisar graus de conceitualização, nem de elaborar alguma cientificidade sobre o objeto pela formulação de um conceito. O grau de apreensão entre ambas as abordagens é diferente. “A história sacrifica a conceitualização pela totalização, enquanto as ciências sociais sacrificam a totalização pela conceitualização” (Novais, 2008; p. 10). Para o cientista social, a reconstituição é o meio e a explicação é o fim. Para o historiador, o meio é a explicação, o fim é a reconstituição. Entre explicar para reconstituir e reconstituir para chegar à explicação está a diferença entre História e Ciência Social. Mas, o imperativo, em ambos os métodos, é o regresso na série de condições.
Na esfera psicológica da existência, os fundamentos do regresso e os princípios regulativos são coordenados pelo Ideal da Razão. Como diz o filósofo Immanuel Kant (1787), na Seção Oitava da Antinomia da Razão Pura, “Princípio Regulativo da Razão Pura com Respeito às Idéias Cosmológicas”, é no regresso que o princípio da razão se preserva.
Segundo Kant, o princípio da razão é uma regra que prescreve um regresso ao qual jamais é permitido se deter num absolutamente incondicionado.
Não se trata de um princípio constitutivo da razão, mas de um princípio da continuação e ampliação da experiência sem que nenhum limite empírico prevaleça como absoluto. Apontar o que o objeto é refere-se ao princípio constitutivo da razão, o que não é possível a partir da razão pura. Assim, se a série nunca é completa, como estipular a síntese na série da regressão?
Este regresso não se estende ao infinito, mas a uma extensão indeterminável. Neste sentido, a pergunta não se refere ao fato dela ser finita ou infinita, mas como se deve levar a cabo o regresso empírico e até onde devemos prosseguir com o mesmo, uma vez que sempre há mais membros do que o regresso atinge; e sempre se pode ir mais longe já que nenhum membro é empiricamente dado como absolutamente incondicionado o que admite um membro ainda mais elevado como possível e, portanto, a perquirição como necessária (Immanuel Kant, 1787; p. 93).
O Ideal é a referência que dá sentido à Razão na reconstituição do passado, determinando as regras a priori da análise retrospectiva. Uma idéia se purifica até o ponto de um conceito determinado de modo completamente a priori. Para Kant, um conceito completamente determinado mediante uma simples idéia denomina-se ideal da razão pura. O uso da razão põe o ideal transcendental como fundamento que representa a determinação completa e necessária das coisas. E o ideal completa a série das condições que são reconduzidas aos seus fundamentos.
Neste panorama de reflexão, este artigo analisa o método da hetero-auto-análise que pretendeu unir o vinho ao ideal da vitória, da saúde, da sociedade perfeita, da fraternidade e à idéia de Identidade. A narrativa sobre o ciclo do vinhedo parte do Sagrado que se reporta à Tradição, ao Passado e à Memória. O referencial desta análise é o tempo histórico braudeliano nos três níveis de realidade, estrutura, conjuntura e acontecimento, porém refletindo-o na esfera psicológica da existência e não na esfera econômica.
O vinho é discernido como o aspecto geracional do presente; o acontecimento que sempre pode despertar um novo sabor e uma nova degustação. A memória é discutida como as condições de inteligibilidade da relação lógica entre presente e passado; o princípio regulativo que liga a estrutura ao acontecimento.
A memória representa o engradado que traz o passado dentro e aonde se inscreve o rótulo da Origem. A dimensão estrutural é o longo passado em que se inscreve o Sagrado. O termo sangue se reporta à metáfora, “o espírito que circula em seu sangue”, por onde escorre a ancestralidade e a hereditariedade.
Este artigo é uma análise crítica da narrativa que procurou unir a natureza semântica do vinho, a função da terra e a compreensão ontológica da própria Origem, de onde partiu o narratário ao falar sobre o vinho. O artigo reflete o ponto de encontro entre o imaginário do vinho e o imaginário do historiador. Espera-se esclarecer como a dimensão semântica do vinho se mistura com sua respectiva ancestralidade sanguínea, moral e social.
O caráter inaugurador deste artigo é a reflexão epistêmica sobre do papel da testemunha e seus efeitos de enunciação enquanto produção carismática de crenças ao falar sobre o passado. Espera-se demonstrar que o método de reconstituição de nosso historiador [testemunha] apresenta um operador psicológico na via explicativa que parte da Origem e chega ao Sagrado, o qual se constitui em toda a série de regressão pelo conteúdo vinho.
A tarefa explicativa se manifesta na associação entre a própria genealogia, o ciclo do vinhedo, o imaginário do vinho e sua oferta como elo de socialização que regula a fraternidade, a vitória e a sociedade perfeita. O sangue representa o passado; o vinho, o acontecimento; a testemunha simboliza a prova que registra a memória do acontecimento e oferece o passado à degustação do presente.
II – Do Sangue ao Passado; Do Vinho à Testemunha
O historiador francês Jean Pierre Raymond Goubert é um descedente de vinhocuores franceses que se propõe a estudar o conceito de Identidade ao refletir o ciclo do vinhedo por uma perspectiva genealógica. Ele apresenteou recentemente um ciclo de seminários no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo por meio dos quais procurou relacionar o imaginário do vinho a uma sede de perfeição.
Os seminários foram divididos em três tópicos: “O sonho do Divino: Vitória sobre a morte e presença da vida”; “O sonho de uma saúde perfeita: de Hipócrates ao paradoxo francês”; “O sonho de uma sociedade perfeita: vinho e fraternidade”. Destas três subdivisões, quatro termos têm um forte destaque enquanto classes formais de pensamentos; ideais dos quais o historiador parte para reconstituir o imaginário do vinho: a vitória, a saúde, a sociedade perfeita e a fraternidade.
O método de reconstituição de Goubert (2010) se confunde enquanto tarefa explicativa quando se manifesta a associação com a própria genealogia – o sujeito – para falar do vinho – o objeto. O historiador expressa suas premissas argumentativas a partir do ponto de encontro entre o ciclo do vinhedo e seu ciclo genealógico de tal modo que é difícil separar o imaginário do vinho do imaginário do narrador.
Antes de falar sobre o vinho, o historiador começa por sua história de vida, pela narrativa da sua origem, para tratar de um elemento que o transcende e, de certa forma, o determina, a tradição do vinhocultor que representa a memória do seu passado; seu calendário de vida; o cheiro da terra; as estações do ano; os períodos de safra; e os instantes de celebração que datam sua memória pessoal e produz sentido e significado [função e valor] na narrativa que busca reconstituir a memória social da vinhocultura e o imaginário do vinho, que se revela na história das festas aristocráticas, populares, profanas, nos ritos litúrgicos e medievais. O vinho é circunscrito no tempo e na memória; no espaço e na sociedade; no prazer e no sagrado, quando é incorporado na liturgia cristã. Ele é apresentado como um patrimônio cultural que exterioriza as relações entre o sagrado, o poder, o econômico, a sociedade, a saúde, o imaginário e o prazer.
O historiador apresenta o vinho como um elemento de celebração e ritualização, representado na busca da perfeita comunhão com a natureza. A explanação teórica alude à idéia de fusão com a terra, identificada como a santa mãe e o ventre com a fertilidade do solo. O vinho é introduzido como o filho da Senhora natureza e, ao mesmo tempo, o princípio de identidade com o passado. O culto, como a cerimônia de Avignon, é um encontro com as raízes da terra; com as raízes do passado; com as raízes da uva. Novos vinhos, todo ano, com novas festas e degustações, é o que muda enquanto conteúdo no antigo engradado das tradições.
Como diz Goubert (2010), a garrafa é sempre a mesma; é o vinho que muda. Deste modo, o vinho é simbólico porque é identitário; é elemento de socialização na constituição de elos sociais, de memórias sociais e da saúde social. No entanto, para se abrir o engradado da memória e o que subjaz sua constituição, necessita-se, assim como com o vinho, de um saca-rolha, metáfora descrita por Goubert para a técnica maiêutica de um saber que manipula e traz para fora o que está dentro; e o que está oculto se apresenta ao sabor, à experiência vivida na exata medida.
Não por acaso, as duas palavras latinas, sapere (saber) e sapore (sabor), têm o mesmo radical; o saber tem sabor, mas na medida errada, pode entorpecer e confundir, azedar e amargar. Isto é, degustar o vinho é abrir o engradado da memória; abrir o engradado da memória é saborear lembranças. O vinho implica degustação, sensação, corporeidade, textura, presentificação do corpo pelo gosto, sabor e aroma que ele desperta.
A memória, da mesma maneira, implica num agente. Como dizem, sem o historiador não há o arquivo; sem o sujeito não há a memória. Abri-la implica numa ação política e metodológica que sempre se dá no presente. Explorar a memória envolve a série de retrocesso à Origem; experiência que revela sabores aos gostos de quem vê e ouve o passado, assim como acontece com quem prova e saboreia o vinho.
A narrativa do historiador se baseia no método da hetero-auto-análise, parecendo introduzir os três níveis de realidade da metodologia braudeliana do tempo histórico, estrutura, conjuntura e acontecimento, como método de reconstituição do imaginário do vinho que parte da sua experiência geracional como descendente de vinhocultores. Em suas palavras: “Meu pai é o vinhocultor. Eu sou o vinhedo. Vocês são as sementes”. O historiador se coloca como um narratário que tenta ligar estrutura e acontecimento por meio da relação direta que faz entre o “senhor do vinhedo” e os “frutos do vinhedo”; entre o passado e o presente; a estrutura e a narrativa.
Jean Pierre R. Goubert busca um período de longa duração para sua reconstituição a partir de um acervo de imagens que retratam a relação dos homens com o vinho em uma longa escala da História. Contudo, sua reconstituição dispõe as imagens numa via explicativa de convencimento crescente sobre o papel universal do vinho como objeto de socialização e sobre a presença do ideal de perfeição no seu processo econômico de produção.
As imagens apresentadas pelo historiador orbitam em torno da sua própria interpretação testemunhada – o testemunho de quem é capaz de ver o que está na imagem; de quem pode interpretar os símbolos que ela apresenta, aproximando as funções epistemológicas entre saber e ver; lembrar e provar – o saber provado e degustado na exata medida.
A variável dependente da metodologia de Goubert para descrever o imaginário do vinho é a própria memória coletiva em que ele se inscreve e que se torna um recurso natural para sua narrativa, o meio pelo qual procura “tocar” nos elementos estruturais e antropológicos do imaginário do vinho; um movimento de unir princípio e fim no tempo sem tempo do sonho da unidade perfeita; da congruência perfeita; da saúde perfeita; da sociedade perfeita. Uma narrativa que se movimenta circularmente em torno do que parece unir a natureza semântica do vinho, a função da terra e a compreensão da própria origem, de onde parte o narratário.
As assertivas sobre o papel do vinho como instrumento de socialização e sobre o ideal de perfeição nas escalas históricas de produção são fundamentadas pela dimensão do Sagrado que antecede a transformação do vinho em produto econômico ao mesmo tempo em que é elo de congregação nos calendários das comemorações sociais.
O historiador esboça uma crítica negativa da perda ontológica que o vinho sofre quando seu processo de produção escorrega da dimensão do Sagrado. Por exemplo, questiona a identidade do vinho Miolo pela análise da sua produtividade anual, procurando fazer crer que a identidade da família Miolo com seu passado original foi supostamente preterida pelos índices econômicos de produção. Ao se lançarem ao futuro ao ritmo industrial, a família Miolo estaria comprometendo os fundamentos da tradição com o passado ao perder qualidade e originalidade no alto processo de produção.
A dimensão do Sagrado no método reconstitutivo do historiador indica o lugar de onde ele parte e não aonde chega. Ao reconstituir, Goubert simultaneamente apresenta o Sagrado, que se manifesta praticamente como um juízo sintético a priori e necessário do seu método. Nas palavras de Kant, é o que poderíamos dizer como a metafísica essencial da sua análise. Este juízo sintético se mostra a partir da relação consanguínea com o passado.
As palavras utilizadas pelo historiador para falar das imagens indicam as classes de pensamento a que elas [as palavras] se referem. Assim, a apresentação do historiador “faz-sugerir” uma relação estrutural entre suas palavras e as imagens apresentadas, lembrando Umberto Eco (2005) quando trabalha a relação dinâmica entre a intenção do texto [no caso, das imagens] e a intenção do autor [no caso, a fala do historiador]. Nestes termos, a intenção das imagens [sem considerarmos aqui a fonte e os autores] se encontra com a intenção do historiador. No caso, então, as imagens falam mais do seu próprio imaginário ou do imaginário do vinho?
As imagens [como um texto] não são um segredo a ser desvendado no sentido hermético da função de descobrir, em que apenas um único significado está disponível (Eco, 2005). Mas, apesar de poder significar muitas coisas, o texto [como as imagens] não significa “qualquer coisa”; ou seja, há um conjunto de elementos que estão dados no tempo em que foi produzido e no tempo em que é lido; dois tempos semânticos, então, podem sobrepor-se sem alterar o sentido do texto [das imagens], o que Eco (2005) chama de “milagre do texto e da sua interpretação”.
Entretanto, a relação estrutural que Goubert constrói entre suas palavras e as imagens demonstra um esforço em totalizar a raiz das imagens pela linguagem, o que significa que sua narrativa aponta para uma reconstituição ontológica de tal modo que a dimensão semântica do vinho se mistura com sua ancestralidade sanguínea.
Fica, então, a questão: qual é o movimento das imagens para o historiador? Trata-se mais de uma imobilidade de conteúdos vestidos por palavras que iluminam, testemunham e trazem as boas novas por serem palavras reveladoras que falam o que vêem? Ou trata-se de uma perspectiva móvel entre outros campos de pensamento que podem ter como referência as mesmas imagens?
Pressupõe-se que a angulação da narrativa para falar do imaginário do vinho indica muito sobre a estrutura em que se apóia a história de vida do próprio historiador, definida por uma ancestralidade genética, moral e social.
O ponto de angulação iluminado por Goubert (2010) foi o modo como o imaginário do vinho foi construído historicamente e como constitui atualmente as relações sociais, inspiradas nos antigos ideais incorporados pelo espírito do vinho, a identidade da gênese, a identidade das gerações, uma vez que ele [o vinho] muda com elas.
O vinho é discernido como uma identidade geracional. Ele se apresenta na dimensão do acontecimento, do fruto, da colheita, da prova, do aroma, do sabor, da sensação – é o futuro da colheita saboreando o passado do cultivo. É o passado provado num exato presente.
A narrativa de Goubert coloca o vinho na esfera psicológica da existência, concebendo-o a partir de ideais necessários [sagrado, vitória, saúde, sociedade perfeita, fraternidade] e concebidos como constituintes de uma ontologia genealógica e historicamente estruturante. Daí a decorrência de seu método na tarefa explicativa a partir do momento em que passa a constituir conteúdos em função de uma ontologia.
Estas concepções assumem uma função estruturante na narrativa do historiador que parte da colheita do vinho, acontecimento] para constituir o elo identitário entre presente e passado. O saca-rolha aqui não abre apenas o vinho, abre o passado; abre as lembranças que vêm ao sabor da prova. A memória é o nível da conjuntura, a dimensão que mantém as condições para que a ontologia e o Sagrado não se percam no domínio do acontecimento não ritualizado.
A apresentação do historiador foi genealógica, cronológica e sociológica e por meio do qual orientou a relação entre o Sagrado e o ciclo do vinhedo. O Sagrado apresenta-se revestido de significados culturais e estruturais. A produção de significados vem do modo como uma cultura explora o possível e delimita os limites. Como diz Kant, o conjunto total das possibilidades vem do modelo, do Ideal.
Nas palavras do biólogo François Jacob (1992), “a vida humana abre um diálogo contínuo entre aquilo que ‘poderia ser’ e aquilo que ‘é’. Uma mistura sutil de crença, de sabedoria e de imaginação constrói diante dos nossos olhos a imagem constantemente modificada do possível” (Jacob, 1992; p. 9). Jogar o “jogo dos possíveis”, diz Jacob (1992), implica em aproximar o possível à realidade, o limite para fora dos quais o conhecimento funciona como mito. A realidade, então, passa a ser os limites do que se quer observar ou a invenção dos fragmentos de um mundo possível.
A apresentação de Goubert é uma narrativa do possível na tentativa de adequar imagens, palavras e acontecimentos, dando uma textura de realidade unificada e coerente a sua interpretação, mas que só pode ser formada no ponto em que o imaginário do vinho se confunde com o imaginário do próprio historiador, com a invenção do que considerou possível a partir do quadro explicativo que criou.
Neste caso, fica a questão: haveria mais de um possível para as imagens apresentadas? Como o historiador considera o possível? Antes ou a partir do Ideal da Perfeição?
O possível revelado na explanação de Goubert resulta de um encontro consangüíneo entre o imaginário do vinho e sua história geracional; recorrendo à metáfora, o vinho como o espírito que circula em seu sangue, por onde escorre a ancestralidade e a hereditariedade.
O rótulo da origem é apresentado como o engradado estrutural da Identidade; é a constituição ontológica da relação contígua entre o passado e o presente; a estrutura e a narrativa; a testemunha e o acontecimento; o pensamento e a linguagem; o espírito e a memória; a origem e o Sagrado; o sangue e o vinho.
Quem prova o acontecimento torna-se consangüíneo com ele. A testemunha prova o real. Saboreia, degusta-o ao lembrar o que viu ou descrever o que vê. A testemunha é a memória do acontecimento. Oferece o passado à prova. Goubert pretendeu ser uma memória, aquela que lembra e reconstitui.
Mas, além de contar sobre a estrutura sacra do vinho, Goubert também nos convidou a prová-la, queria corporificar a experiência ao sabor que despertaria em nossa memória por uma ritualização que pretendia unificar as funções de ver e ouvir sobre o vinho. Faltava, desta forma, prová-lo.
Goubert trouxe um vinho do seu vinhedo na França e quis tomá-lo ao final do ciclo dos seminários, propondo uma espécie de degustação ritualizada a fim de transpor para o momento de forma mais ou menos exata o que foi explanado. Pode-se entender que a prova do vinho corporificaria em nossa memória um evento congregado por um ritual de celebração, uma espécie de sacralização do encontro. Em outras palavras, significaria literalmente a prova do ciclo de um vinhedo.
Mas, não tínhamos um saca-rolha !
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