terça-feira, 14 de junho de 2011

Prelúdio Épico da História ou Psicologia Lírica ?

Resumo

A partir do front contemporâneo que separa a História Estrutural da História Narrativa, vamos discutir a perspectiva que interliga as dimensões macro e micro da História, buscando refletir outras categorias do tempo diferentes do tempo histórico, como o tempo mítico e o tempo poético nos gêneros narrativos da Origem, procurando ressaltar a íntima relação psicológica entre o mythos e o logos no movimento presente, passado e futuro.

I - Introdução

Na obra, O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges, Hartog (1998) discute o problema do método em História, questionando o modo cientificista da metodologia fusteliana de análise que associou a análise em Química com a análise em História. "Tomando de empréstimo da química: a análise em história é uma operação de isolamento". Entretanto, como diz Hartog (2003), "Fustel, o mais metódico dos historiadores, enganou-se metodicamente".

Há uma insuficiência da metáfora médica aplicada à metodologia da História ao conceber os fatos históricos como um corpo da História, de modo que o procedimento da descrição pudesse constituir a base de uma anatomia ou de uma fisiologia histórica. Por acaso, o anatomista e o fisiólogo poderiam fazer alguma ideia do que é o homem se nunca o tivessem visto? Nas palavras de Paul Veyne (1977): "É verdade que a História aparece sob a forma do historiador, como personagem carismática, que sucedeu, por exemplo, ao que era o sábio em 1915, o químico com provetas". 

Segundo Hartog (1980), o ofício do historiador se assemelha à figura do viajante, cuja retórica constitui a tradução da alteridade e que age, portanto, como um operador de crença. "Ela que faz o destinatário crer que a tradução é fiel. Globalmente, produz, pois, um efeito de crença"  mediadas (ou providenciadas) pelo olho e ouvido; "olho do viajante, ouvido do público".

De acordo com Hartog (1980), o olho é uma fonte de enunciação que implica num "eu vi" e que se operacionaliza como a "intervenção do narrador em sua narrativa para provar algo". Essa atitude tem uma semelhança estrutural com o que se denomina de "autópsia herodotiana", isto é, a ópsis, como um eu-vi, se remete diretamente ou é a própria testemunha (Hístor), "a testemunha enquanto aquela que sabe, mas, também aquele que viu". Ou seja, a narrativa faz crer que o olho escreve; a visão é uma constante epistemológica. 

A adequação não é tanto entre o visível e o dizível, mas entre o observável e o notável. "De fato, observei o que era notável e anotei o que era observável. A autópsia fundamenta as veracidades das proposições, mas presta conta da maneira de escrever do autor, justificando a presença repetida de marcas fortes de enunciação" como o exercício de persuasão de um texto.

Na época de Tucídides, história grega séria era história contemporânea e não história do passado, isto é, "não era o historiador que escolhia o assunto, era o assunto que escolhia o historiador", o que colocava o historiador num tempo em que o ofício do historiador era a autobiografia.

O eu vi, de Homero a Heródoto, contém um elemento invisível na história visível. Isto atrela a fidelidade do olhar à racionalidade das coisas e não aos objetos em si. Essa poderia ser uma diferença no clássico dueto entre antigos e modernos, talvez mais polifônico do que sinfônico. A História como discurso e retórica dos antigos difere dos modernos em que a História é tecida mais como um corpo de fatos do que de almas revolucionárias.

Com os antigos, a episteme, ou o sistema em que o olhar se liga as coisas (Hartog, 1980) não se detém na vista objetiva. A palavra ópsis significa a vista (subjetiva e objetiva), a presença, mas também o sonho. O sonho faz parte do visível e, para aquele que o recebe vale como autópsia: ele faz crer, faz querer e faz fazer.

No mundo das Histórias, o "invisível" parece penetrar o visível: o sonho é visível ou está de lado do visível. Interessante ressaltar o comentário de Hartog (1980) a respeito do modo como o par visível-indizível funciona de modo diferente de uma ponta a outra do mar Egeu. Se na margem asiática o invisível era visto, na margem grega o invisível era dito. Na Ásia, a função do oráculo está nos sonhos; na Grécia está nas palavras.

Entre o ver e o dizer, Hartog (1980) salienta o crivo das condições de visibilidade, nas quais se encontra o jogo das enunciações entre o eu vieu digo; eu digo o que vejo; eu vejo o que posso dizer; eu digo o que posso ver; o que torna adequada quase sempre a relação entre o visível e o dizível.

Além da opsis, a akoé (eu ouvi) também produz efeitos de crenças nas narrativas quando o número de intermediários na narrativa se multiplica. O eu ouvi reveza com o eu vi quando este último não é possível ou não é mais possível (...) o ouvido, do ponto de vista do fazer crer, vale menos do que o olho: disto se conclui que uma narrativa presa a um eu ouvi será menos crível ou menos persuasiva que uma outra organizada em torno de um eu vi. 

Hartog (1980) ilustra a akoé em Heródoto, quando um labirinto no Egito,  mas ele distingue "o que de fato viu (as salas superiores) e o que não se deixou que ele visse (as salas inferiores), falando do que não viu por ouvir dizer." Entretanto, quando o ponto é recuar no tempo e não avançar até os limites, o papel da akoé se remete ao primeiro enunciador qualificado muitas vezes como sábio (logíos). No Egito antigo, esses interlocutores são os sacerdotes. 

Tucídides, como um historiador do presente, funda seu saber histórico na opsis, ou seja, naquilo que viu; razão pela qual a reportagem do presente era a única factível. Esse presente pode ser mais bem conceituado nos termos de Marc Bloch como um passado recente. Por esse mesmo motivo, a akoé remete a um eu ouvi mais distante de um passado recente.

O mundo da escrita, então, na função de guardar e preservar o passado, surge com o alfabeto sírio-fenício que apareceu na primeira metade do séc. VIII a. C; Como diz Tonybee (1976), "introduzida na Grécia pelos fenícios (...) os gregos tomaram emprestadas as letras aos fenícios, que as tinham ensinado a eles, empregando-as ligeiramente modificadas". "A Grécia não conheceu uma revolução da escrita e o escrito não veio revezar com uma tradição oral subitamente desfalecente". Como ressalta Arnold Toynbee (1976), aproximadamente, de 1200 a. C. até 750 a. C. os gregos não possuíam alfabeto e nenhum registro foi feito "por quase 450 anos". "Pela metade do séc. VIII a. C., os sírios, pouco antes de serem subjugados pelo mais terrível assalto do militarismo assírio, deram um súbito estímulo revolucionário aos helenos, transmitindo-lhes o alfabeto fenício". Nos séculos VII e VIII a. C., "a civilização helênica inspirou-se nos progressos culturais que a civilização síria vinha conseguindo desde o séc. XII a. C., durante a época em que o Mundo Grego, segundo todas as indicações, ainda estava adormecido".

A modificação helênica do alfabeto fenício se deu em função da própria língua, "usando alguns dos símbolos consonantais fenícios para representar vogais, tiveram pela primeira vez, uma escrita simples o bastante para ser escrita e lida pelo homem do povo" (Ibid). Heródoto, por sua vez, ao começar uma de suas Histórias, associando o termo apódeixis com pesquisa, "Heródoto de Túrio expõe aqui suas pesquisas" ("Herodótou Thouríou historíes apódeixis"), o historiador posiciona sua narrativa para o tempo passado, "invoca a tradição épica e rivaliza com ela" (Ibid).

Heródoto acrescenta dois elementos na metodologia histórica que não pertencem mais ao mundo da oralidade, a assinatura e o nome da sua cidade, Heródoto de Túrio. Ao escrever e assinar a origem da obra, Heródoto instala o autor no mundo da escrita. Mas, o escrito grego herodotiano é uma mestiçagem com os saberes egípcios, "povos de ciência muito antiga". 

Enfim, escrever é prever. Se os egípcios também descobriram mais presságios que todos os outros homens reunidos é porque quando acontecia um prodígio, aguardavam o que se seguia, escrevendo; e se, mais tarde, acontececesse alguma coisa de semelhante, julgavam que o que viria daí em diante seria do mesmo gênero.

O mythos é o gênero narrativo do tempo predominante na antiguidade grega e que mais precisamente alude à interferência do narrador "em seu próprio nome" em detrimento da escrita. Dito de outro modo: "quem, em que momento, fala a quem? Quais os efeitos disso sobre a narrativa? Quais os efeitos de uma narrativa que narra e escreve o invisível? Nesse sentido, diz Hartog (1980): "evocá-lo é convocar a figura do poeta".

Aristóteles designa Heródoto como "ho mythológos". Aulo Gélio, seis séculos mais tarde, falará de Heródoto como "homo fabulator", quem esconde paradoxos e fabrica mythoi. O mythos despertava o prazer do ouvido por decorá-lo ao gosto maravilhoso do desejo de encantar, agradar mais o instante e o imediato, tendo como princípio de organização o prazer, "o prazer dos ouvintes, o prazer do narrador que se deixa conduzir ao prazer".

Os procedimentos literários para fazer crer: eu vi; eu ouvi; eu digo; eu escrevo, são marcas fictícias de retórica da alteridade e da persuasão que pretendem convencer porque refletiriam de certo modo o passado. É asim que a primeira verdade histórica ocidental se funda nas escrituras divinas.

Deste ponto, se torna explícito e factível o intento e a necessidade de se refletir a História a partir também do que ela não é (?) mas foi (!) no sentido de que a História passa a ser mais um gênero narrativo do que uma disciplina, e a invenção maior de modo algum pode ter sido a da História, mas do ofício do Historiador. 

Doravante, como um gênero literário, os traços que marcam o esboço da primeira narrativa histórica podem ser colhidos numa via de duas mãos, da Epopéia para a História, e no caminho de volta, da História para a Epopéia. Ou seja, o historiador começa cantando uma grande guerra, instaurada por um conflito, um desacordo, uma ruptura.

A Ilíada canta a expulsão dos aqueus de suas terras pelos troianos, fixando o problema central da origem nas narrativas históricas. O primeiro historiador era um homem exilado, "sabe-se que Heródoto teve de deixar Halicarnasso". Dos cantos dos aedos à escrita do historiador, as "condições de trabalho" se deram no exílio. Assim, tanto os cantos líricos quanto a escrita da História surgem de um lugar comum, no exílio, marcando a dor psicológica da ausência - o presente que está no passado.

Os cantos contam e a escrita conserva a memória até que a rota do exílio se transforme "finalmente em retorno à terra de Origem". A epopéia, então, é a primeira História. Neste caso, a reconstituição não parte de Homero para Heródoto, mas de Heródoto a Homero, cujo herói desperta todos os dias como se fosse o primeiro. Ulisses, o mesmo sem dúvida do primeiro dia, somente volta a ser plenamente ele mesmo após seu reencontro com Penélope.

Durante toda a Odisséia, Ulisses é designado como aquele que, ao contrário de seus companheiros, não quer esquecer, nem o retorno, nem Ítaca, nem principalmente que é um homem mortal. Hartog (2003) lembra Pseudo-Longino, o sublime do séc. IX a. C, especialista em Homero que tentou exprimir a relação histórica e psicológica entre os poemas Ilíada e a Odisséia. A Odisséia se apresenta como um "poema homérico da velhice (sendo a Ilíada o da juventude)".

A Odisséia se colocaria como um epílogo da Ilíada, ou seja, a narrativa histórica que vem depois, e que retribui aos heróis o sentido histórico da dor de suas angústias – o passado reafirmando o presente. "Na Ilíada, Tróia ainda não foi tomada e Aquiles ainda está vivo: estamos antes, na espera. Desde a abertura da Odisséia, situamo-nos depois, na memória do acontecimento e na lembrança do luto e dos sofrimentos padecidos".

 A Guerra de Tróia se coloca como um acontecimento axial, o que significa que a Odisséia está em posição de história na História; "(...) a Odisséia inaugura um tempo em que o prazer (térpsis), normalmente almejado e visado pelo canto do aedo, está em várias ocasiões minado, comprometido pela dor, pelo desgosto, pelo pesar que suscita ou desperta em uma parcela do auditório".

Hartog (2003) acrescenta que o prazer puro estava longe dos "homens comedores de pão"; estava nas festas dos feácios, nas danças, nos banhos quentes, nos leitos e nas trocas constantes de trajes; mas, enquanto isso, os aedos são as pessoas que cantam o passado, a morte e a perda. Os feácios, ao contrário, ignoravam a violência e a guerra. Se os feácios se divertiam, Ulisses não continha lágrimas. Como ressalta Hartog (2003), a Odisséia, como a epopéia de um retorno doloroso, é "habitada pela ausência e construída em torno da memória".

O canto do aedo contava a morte do passado. Por isso, Penélope não suportava que Fêmio, o aedo de Ítaca cantesse a volta de Tróia e as misérias dos aqueus. Irredutível, ela mantinha o luto pela ausência do esposo, vivendo como prisioneira do póthos, pensamento obcecado pelo desaparecido.

Hartog (2003) parte da seguinte análise: há uma diferença de registro entre Penélope e os outros: "ela está ainda na ausência e na dor pessoal, enquanto os outros escutam essas histórias como (já) pertencentes ao passado e ligados ao registro do kléos". Mortos, salienta Hartog, são temas para as epopéias. "Um Ulisses, homem do passado, ou seja, morto, vale mais que um Ulisses (presente) desaparecido". O canto épico constitui uma memória institucionalizada conforme o código social de uma cultura heróica. "O canto épico coroa o processo, transforma o indivíduo que perdeu a vida na figura de um morto, cuja presença, como morto, está definitivamente inscrita na memória do grupo" (Ibid).

A reconciliação com a realidade, a kátharsis, segundo Aristóteles, era a essência da tragédia e, segundo Hegel, a finalidade última da história, produzindo-se graças às lágrimas da rememoração (Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro). A Musa que inspirava o aedo a cantar o desempenho épico do passado também repousava em suas testemunhas, "sobre o fato de estar lá (...) e o aedo, sob o efeito da inspiração, via como a Musa, como se ele também tivesse estado presente (...) para a Musa, ver, saber e dizer caminhavam juntos (...) como 'verdadeiramente aconteceu' era seu pão cotidiano".

Tanto o aedo, quanto o historiador, investem numa narrativa que pretende dar conta de uma ausência, da "não coincidência de si mesmo", alojada na vivência de uma distância entre alteridade e identidade.
A percepção da ausência ressignifica – confere sentido – no encontro com a historicidade, tecida pela inteligibilidade que interliga presente e passado, enquanto que a epopéia separa passado e presente por justaposição.

A inteligibilidade, nos termos de Hartog (2003) constitui a "inversão" ou "reviravolta" entre o presente e o pequeno, o passado e o grande. Nesses termos, a Odisséia fora a descoberta dolorosa de uma historicidade e o historiador, tomado pelo tempo e em luta contra ele, também contrastou passado (grande) e presente (pequeno), mas o fez a partir de seu próprio presente, a partir daquilo que diferencia o "seu tempo" do passado, porém numa ordem não cíclica da História. 

Desse modo, do ponto de vista da psicologia social, a memória social tem um papel estruturante na organização de reminiscências e narrativas que escorrem da historia para o mythos e do mythos para a historia. 

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