Teoricamente, seria possível que um computador (entendido no seu conjunto: hardware + software) pudesse reproduzir algum mecanismo com características de um processo criativo? Caso existam limites (admitindo-se que existem), estes são de natureza mais profunda, estruturais, não podendo, portanto ser superados por meios tecnológicos? Em que medida os modelos cognitivos computacionais poderão ser considerados réplicas do processo humano de cognição?
Luciano Fiscina - 15/10/2010
A sociedade cibernética inaugura o contexto que coloca em fusão o mundo real com a realidade virtual por meio de uma tecelagem de redes computadorizadas que tornam muito tênue o limite entre o real e a fantasia. Na sociedade cibernética, o sonho adquire formas fantásticas; ou a própria cibernética já seria o resultado de sonhos fantásticos. No primeiro caso, então, o mundo real seria a falsa aparência de uma vivência tangível; no segundo caso, a realidade virtual residiria nas imagens projetadas por softwares, sistemas de ligações tecnológicas atrelados às redes econômicas que manipulam as operações neuronais por um processo auto-regulador homeostático.
Isto significa que, atualmente, a abstração do mundo Perfeito ou mundo Ideal aparece como uma proposta de sociedade computadorizada e concernente ao tempo estrutural econômico-científico dos sistemas de regulação que codificam imagens e o programa da realidade vigente. E aqui temos o paradoxo central que se revela na análise ontológica e epistemológica de um computador inteligente que venha a ser também criativo a ponto de automatizar e modelar os processos cognitivos humanos. Entretanto, não vamos explicitar e desenvolver este paradoxo agora. Vamos seguir adiante, procurando contornar alguns problemas de base para em seguida aprofundar no paradoxo que vem a substanciar as perspectivas ontológica e epistemológica subjacentes às perguntas acima.
Os elos eletrônicos na atual sociedade adjetivada pela Globalização mediam os processos de socialização de modo imanente ao enquadramento institucional técnocientífico. A observação do gênero utópico revelado pelos Sistemas de Computação Global revela algumas tipologias icônicas, imagéticas e simbólicas, que tensionam a relação entre o Tempo e a Natureza para além da concepção cristológica do Fim do Mundo. Por exemplo, uma análise criptográfica da Trilogia Matrix serve como alegoria das conseqüências do exercício da racionalidade técnica levada à sua radicalidade.
A narrativa do Matrix tem uma singela associação com o Mito da Caverna de Platão. Matrix é descrita como um cativeiro, uma prisão, onde os humanos nascem como escravos, porém, de máquinas inteligentes que assumiram o planeta a partir do momento em que os homens queimaram todo o Céu.
Os homens não tinham mais o Sol e decaíram de modo que restaram só as máquinas que encontraram no corpo humano energia equivalente para sua sobrevivência. As máquinas inteligentes passaram a se alimentar de ovos humanos que são cultivados em cápsulas eletrônicas. O elemento central na narrativa é o Tempo; o tempo da queda; o tempo em que o ser humano foi transformado em alimento energético de um grande sistema cibernético que se retroalimenta da morte humana. Matrix é um programa que produz um mundo de ilusões codificadas por processadores que controlam a liberdade. Os homens são prisioneiros de suas próprias mentes, ou ainda, das informações eletroquímicas do cérebro. A Matrix existe como uma simulação neurointerativa; um programa que produz imagens residuais como a projeção mental de um eu digital.
Matrix coloca em questão a problemática de quando o real passa a ser um programa que roda em um computador de modo que o sonho da vida artificial deixa de ser a construção de modelos parecidos com a Vida, mas passa a ser o próprio Modelo, o próprio exemplo de vida. Aqui, então, retornamos ao paradoxo, ou seja, não se trata apenas de uma confusão ontológica entre Criador e Criatura, mas de um problema epistemológica que confunde o conceito de Inteligência com o processamento inteligente de informações.
Para desenvolver esta questão, coloca-se a premissa de base que sustenta a hipótese desta reflexão. A inteligência não vem dissociada do devaneio e da imaginação. Isto significa que um computador criativo precisará imaginar o seu próprio processo de criação e não apenas realizá-lo.
Do ponto de vista ontológico, a vida não é mecânica, mas dinâmica, isto é, auto-regulativa, o que significa que tanto a Vida como a Consciência Humana são os resultados evolutivos de princípios naturais inerentes aos processos genéticos. Deste modo, a Vida feita pela natureza nos tornou humanos, mas a vida replicada por computadores inteligentes ou por uma sofisticada engenharia genética se tornará o que? Qual será o predicado do novo Sujeito da Vida? O cálculo perfeito, a isenção de emoções, processamentos polifônicos, monofônicos, de dados infinitesimais? Isto bastaria para qualificar processos inteligentes?
Uma das principais passagens do texto de Marcelo Maroldi (2006) reflete de maneira muito pontual a questão de base do problema epistemológico, qual seja, o fato de que “a cognição humana é impossível de ser replicada em máquinas por não termos acesso a nossos processos mentais, apenas a representação deles” (Ibid, p. 127). Isto abre outra questão corolária, a arte de fabricação de sofisticados computadores, como o produto dos processos da Inteligência Humana – IH –, poderia refletir [tal como um espelho] a base regulatória e constitutiva da IH de modo a poder ser aplicada heuristicamente no constante produto da ação inteligente da fabricação humana, a inteligência artificial – IA?
Assim, fica outra questão, como equivaler inteligência orgânica com inteligência sintética? Poderia, então, se dizer que tal equivalência seria simétrica a um aparelhamento instantâneo entre o Humano e o Robô. Trataria-se de uma verdadeira revolução epistemológica ao nível em que a ciência se confunde à magia, o cientista ao mago. Imprimi-se aí uma nova questão, há que se observar no mundo do computador inteligente e criativo, modelado por processos cognitivos humanos, a crença, a fé e a teimosia. Um computador criativo não deve apenas saber obedecer ou inovar, mas teimar por acreditar, mais do que isso, por não desistir mesmo com uma coleção infinita de erros. A criatividade geralmente não vem do acerto porque o sucesso consecutivo acomoda, mas vem das estratégias de solução frente ao erro e ao problema, o quebra-cabeça no sentido khuniano.
Trata-se, portanto, de uma fronteira ontológica que torna intransponível a possibilidade de se transformar o produto da imaginação humana em criatividade sintética, uma vez que ela já é o próprio processo da Criatividade elevada muitas vezes ao seu nível máximo, de acordo com os recursos históricos e técnológicos da época. Isto é, há uma irreversibilidade nos mecanismos da vida de modo que a reprodução de uma vida criativa sintética é o resultado obrigatório de um modelo, vindo jamais a ser o próprio Modelo ou mesmo uma replicação e simulação dele. Como diz Umberto Eco (2006), “penso nos computadores difundindo uma nova forma de literatura [entenda-se também aqui como novas Narrativas sobre o Real], mas sendo incapazes de satisfazer as necessidades intelectuais que estimulam”.
Não se pode confundir a busca com a coisa. O qualificador dos processos de cognição humana já se mostra na própria busca sem limites, sem fronteiras, atingindo o inimaginável e atravessando o horizonte do possível ao nos lançar no virtual com redes eletrônicas que satisfazem desejos sensoriais [reais]. O humano é inesgotável, nesta sede está o motor da criatividade com o combustível da Vontade, a volição. O computador criativo modelado por processos cognitivos humanos é a coisa, o objeto da criação, o produto da inteligência imaginativa do criador. A coisa é uma síntese temporária. A busca é uma análise permanente. Um é o produto o outro é o processo. Um é a imagem, o outro o caminho, a dúvida com suas bifurcações e sistemas de significação não lógicos e afetivamente tautológicos.